Volume organizado por Newton Bignotto analisa as principais matrizes históricas das experiências republicanas

Ensaios destacam elementos que podem ajudar a enfrentar questões do nosso tempo

por Paula Gabriela Mendes Lima 06/04/2013 00:13
Wikimedia Commons/ Santi di Tito/Reprodução
Wikimedia Commons/ Santi di Tito/Reprodução (foto: Wikimedia Commons/ Santi di Tito/Reprodução)
A atuação da sociedade na cena política parece exigir um enorme esforço dos cidadãos brasileiros, que estão, na sua maioria, preocupados com os interesses privados e com os direitos individuais. Participação popular e cidadania ativa, por exemplo, parecem temas utópicos na atualidade. A recém-lançada obra 'Matrizes do republicanismo' nos instiga a pensar sobre esse esvaziamento do espaço público e suas possíveis soluções a partir da apresentação de uma história das ideias republicanas. Convite à reflexão sobre a natureza dos problemas políticos atuais a partir da tradição republicana, ela oferece suporte para o desenvolvimento de uma filosofia adequada ao nosso tempo.

Trata-se de obra coletiva organizada pelo professor Newton Bignotto, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com textos de professores e pesquisadores da instituição e da Universidade de São Paulo (USP). Cada autor apresenta uma matriz republicana que se desenvolve de forma específica, como produto de um determinado momento histórico, mas incorpora e retoma temas trabalhados em outros períodos.

Sérgio Cardoso analisa as instituições, os pensamentos e as representações produzidas a partir do século 2 a.C., período em que se inscreve a República Romana. O ideário político romano, nesse período, assentava-se em conceitos e categorias associadas à cultura política dos gregos. O autor delimita sua análise à 'História', obra do grego Políbio, o que permite refletir sobre as consequências do entrelaçamento desses dois mundos para a constituição das matrizes do republicanismo romano.

Políbio analisa as diversas formas de Constituição e a natureza do regime romano e Cardoso destaca a concepção de Constituição Mista e de poder do povo. Na República romana a Constituição dispõe que o povo é um dos poderes. Entretanto, isso não corresponde à realidade da época, quando houve efetiva exclusão do povo do exercício do poder. Isso não significa, contudo, que haja equívoco nas considerações de Políbio sobre o poder do povo: não é o povo que governa, mas o consentimento popular que legitima um regime. O povo, constituído por uma história, mantém os poderes e rege a vida em comum.

O republicanismo italiano do período renascentista oferece uma contribuição original. O professor Helton Adverse, por sua vez, apresenta-a a partir da análise dos traços fundamentais do republicanismo florentino. Ele tem como ponto de partida a concepção de humanismo cívico, caracterizado pela valorização da vida ativa e uma nova visão de história, “comprometida com a produção de um sentido político a ser partilhado, com o desenvolvimento de um sentimento cívico e com o estreitamento de laços entre o cidadão e a cidade”.

A discussão teórica sobre o humanismo cívico suscitou uma nova formulação do republicanismo no final do século 15. Nicolau Maquiavel, nesse período, apresentou a liberdade e a lei como o resultado do confronto entre desejos que se sobrepuserem podem demolir o corpo político. A lei, nesse sentido, não tem sua origem no consentimento popular, mas no legislador. Cabe a ele, com suas habilidades políticas, fundar e refundar um governo de leis e, com isso, abrir caminho para a ação do povo, caracterizado pela devoção à pátria, o respeito às leis e o amor à liberdade.

Governo das leis Ao contrário da Itália – onde as reflexões sobre o republicanismo estão presentes desde a Roma antiga –, o ideário republicano foi incorporado ao pensamento político inglês no decorrer do século 16. Suas matrizes, apresenta o professor Alberto Barros, remontam a um período de protestos contra a monarquia, em que o debate sobre o direito à resistência política tem relevância. Defendia-se o direito do povo (detentor do poder político) de assumi-lo caso o governante desprezasse o interesse comum e as leis fundadas no consentimento popular.

Na primeira metade do século 17, declarada a Commonwealth (ou “Estado livre”), o republicanismo se destacava como alternativa possível. Barros afirma que a literatura gerada nesse período, influenciada pelas ideias de John Milton, Marchamont Nedham e James Harrington, passou a defender a ideia de governo das leis e assumiu o republicanismo como regime mais adequado para o exercício da liberdade e proteção dos bens dos cidadãos. Outros republicanos, como Algernon Sidney, sustentavam ainda a viabilidade de um projeto constitucional em que o elemento democrático fosse predominante. Tal projeto possibilitaria uma cidadania ativa na articulação e preservação do interesse público.

Nas colônias norte-americanas, essa literatura inglesa encontrou maior eco do que na Inglaterra. No século 18, desenvolveu-se nos Estados Unidos uma complexa rede de sociabilidade e ativismo político que se expandiu territorial e verticalmente, abrangendo diversos extratos sociais. Essas estruturas associativas voluntárias, afirma a professora Heloisa Starling, marcaram o republicanismo norte-americano por consolidar o direito de participação popular e fundar sistema de intensa circulação de ideias. O compartilhamento de condutas políticas e de um ideário político republicano viabilizou o sucesso da Revolução Americana e, em consequência, a sua Declaração de Independência.

Depois da revolução, o debate sobre o republicanismo americano se intensificou. Para Starling, a Constituição Americana promulgada neste período trouxe traços inovadores à tradição republicana, como o “esquema da representação” e a positivação da Carta de Direitos. Esse “esquema” abrangia a autonomia dos Estados e as condições para a constituição de um governo central com capacidade de regulação nacional, exército permanente, controle fiscal etc – compreendia também o processo de escolha dos representantes do povo para o exercício desses governos. Já a carta, anexada ao texto constitucional em 1791, tinha como escopo a extensão da cidadania a todos os indivíduos e a necessidade de limitar as arbitrariedades de um governo central forte. Com isso, articulou-se, no texto constitucional, a ideia de república e democracia.

Virtude e soberania A matriz do republicanismo francês também se desenvolveu durante um período revolucionário, especialmente entre o século 17 e 18. Para apresentá-la, o professor Newton Bignotto tem como ponto de partida de sua análise as contribuições do pensamento de Montesquieu e Rousseau. O primeiro associa o regime republicano à ideia de virtude política, definida como o amor pelas leis e pela pátria e como supremacia do interesse público sobre o interesse particular. O segundo também abordou o tema da virtude e da base moral dos homens para a legitimação do sistema social e político. Outra questão importante de Rousseau, para Bignotto, é a ideia da soberania, tratada do ponto de vista da vontade geral: ela expressa um ente coletivo que busca construir um corpo político a partir do interesse comum. Esse ente coletivo deve ser uno e indivisível, pois o soberano não pode se dividir sobre pena de ser destruído.

A partir desse repertório conceitual, Bignotto delimita suas reflexões ao período da Revolução Francesa compreendido entre a fuga do rei Luís XVI até junho de 1791. Identifica-se, nesse contexto, duas vertentes do republicanismo. Uma destaca-se pela defesa dos interesses privados e do avanço das instituições legais e tem como um de seus representantes Condorcet, que apresentava um projeto constitucional fundado na concepção de representação e direitos humanos. A outra, caracterizada pela defesa do interesse público, associa-se especialmente à Robespierre. Ele reivindicava dos homens virtuosos o amor à pátria que deveria ser defendida com todas as armas. Para ele não havia como separar revolução e república. Com o fim do combate aos inimigos da pátria tem-se, também, o fim do republicanismo francês do século 18.

Essas cinco matrizes recuperam conceitos e princípios da tradição republicana como a defesa da vida ativa e do interesse comum, e trazem elementos inovadores à história do pensamento republicano. Elas apresentam valores e ideias que foram fundamentais em um determinado momento político e que podem ser hoje utilizados como referencial para buscar respostas às questões políticas de nossa época.

* Paula Gabriela Mendes Lima é Mestre em direito pela UFMG e consultora em direito da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.


Matrizes do Republicanismo

.Organização de Newton Bignotto
.Editora UFMG, 212 páginas, R$ 58

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