O construtor de pontes

por Carlos Marcelo 06/07/2019 20:58
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(foto: Divulgação )

“Melhor que o silêncio, só João”, receitou Caetano Veloso em Pra ninguém. Faz sentido. João Gilberto foi um dos raros brasileiros que merecem o epíteto de gênio sem o risco do exagero. Discretamente, quase murmurando, promoveu uma revolução na música brasileira que espantou – e encantou – o mundo. A começar por Chega de saudade. No livro A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano apontam a gravação do disco de 78 rotações como um dos destaques do emblemático 1958. Eles lembram que “a bossa nova de Chega de saudade está quase toda na harmonia, nos acordes alterados, pouco utilizados por nossos músicos da época, e na nova batida de violão executada por João Gilberto. Sobre Desafinado, lançada no ano seguinte, os historiadores são ainda mais incisivos: “Mostrava tudo o que a bossa nova oferecia de inovador e revolucionário: o canto intimista, a letra sintética, despojada, o emprego de acordes alterados e, sobretudo, um extraordinário jogo rítmico entre o violão, a bateria e a voz do cantor.”

 A mudança não foi apenas rítmica. A escolha do repertório foi também fundamental para a consolidação de João Gilberto como um redescobridor do Brasil. Além de cravar versões definitivas – Chega de saudade e Garota de Ipanema à frente – das recém-criadas composições de Tom Jobim e parceiros, trouxe de volta os compositores da primeira metade do século 20: Noel Rosa, Ary Barroso... Foi assim, na segunda metade dos anos 1950, que o baiano de Juazeiro começou a construir uma ponte entre o país secular e o moderno, com ânsia de futuro: as curvas da Pampulha e da Brasília de Niemeyer encontravam equivalência nos acordes sinuosos da bossa nova. Como observa José Castello na biografia Vinicius de Moraes: o poeta da paixão, as músicas cantadas por João Gilberto surgiram como “reflexo de um tempo em que, com JK ao volante, o Brasil decide ser otimista.” Outros tempos, portanto. De um país a navegar no doce balanço a caminho do progresso. Tempos de delicadeza, mais afinados e menos ruidosos.

João Gilberto também foi fundamental como artífice da ponte entre o Brasil e o mundo por meio da música. Gravado em 1963 em Nova York, o disco Getz/Gilberto consolidou o encontro da bossa nova e do jazz norte-americano. O violão de Gilberto e o sax tenor de Stan Getz entenderam-se como se velhos amigos fossem – e ainda emolduraram a voz, pequena e encantadora, de Astrud Gilberto (então esposa de João). O álbum tornou-se um dos mais vendidos da história do jazz. “As canções de João Gilberto e Antônio Carlos Jobim vieram para a América como um sopro de ar fresco”, comentou à época o saxofonista. “Mesmo que falemos línguas diferentes, Getz é uma pessoa que eu compreendo e que me compreende”, devolveu o baiano. E a reverência à bossa no exterior apenas aumenta desde então, como atesta a popularidade do gênero nos EUA, Europa e Japão.

De volta ao Brasil, João Gilberto continuou a estabelecer ligações entre diferentes gerações. Mesmo os atrasos lendários e as idiossincrasias nos esparsos shows não impediram a ampliação do culto. Também foi marcante o endosso ao talento dos que surgiram depois de João. Ele cantou Chico Buarque (Retrato em branco e preto), Caetano Veloso (Sampa, Coração vagabundo), Rita Lee (Brazil com S), até Lobão (Me chama). Fez mais: reinventou standards norte-americanos (S´Wonderful) e latinos (Besame mucho). Reinventou, não; transformou o nome próprio em inconfundível verbo de ação. Joãogilbertizou.

A voz e o violão de João Gilberto se calaram aos 88 anos. Sua música, porém, permanecerá como a grande arte, produto do trabalho – preciso e precioso – de um ourives. Sambas da nossa terra, a serem cantarolados e esmerilhados ao longo do tempo como mantras zen. Ho-ba-la-lá.

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