Novo disco de Chico Buarque tem musa lésbica e petardo pró-refugiados e favelados

'Caravanas' é o primeiro CD de inéditas em seis anos. Lírico, o poeta ainda manda recado para os haters da internet

por Ângela Faria 23/08/2017 08:55
Leo Aversa/Divulgação
Além de um time de craques veteranos, Chico Buarque convidou Rafael Mike, do Dream Team Passinho, e os netos Clara Buarque e Chico Brown (abaixo) para o novo disco. (foto: Leo Aversa/Divulgação)
Contundente e lírico. Assim é Caravanas (Biscoito Fino), disco que Chico Buarque vai mandar para as lojas e plataformas digitais na sexta-feira, 25. São nove faixas – sete inéditas, além de A moça do sonho (parceria com Edu Lobo para o musical Cambaio) e Dueto, cantada por ele e a neta Clara, assim como ocorreu no documentário sobre o compositor dirigido por Miguel Faria Jr., lançado em 2015.

Última faixa, As caravanas arrepia. Fala tanto do Brasil racista e acomodado à histórica violência social, que apoia a exclusão dos pretos de suas praias chiques, quanto dos refugiados que buscam um porto mundo afora. ''Não há barreira que retenha/ Esses estranhos/ Jovens tipo muçulmanos (...) / Com negros torsos nus deixam/ Em polvorosa/ A gente ordeira e virtuosa que apela/ Pra polícia despachar de volta/ O populacho pra favela (...)'', canta ele. Certeiro, dispara: ''Tem que bater, tem que matar/ Engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia''. Chico convidou Rafael Mike, integrante do grupo Dream Team do Passinho, símbolo do funk carioca, para participar da faixa.

Não temos aqui panfleto. Pura poesia, a canção-petardo remete a Caravan, de Duke Ellington. Spoiler: Chico não caiu no batidão. Mescla suavemente o beatbox de Mike à sua inspirada crônica social, uma bela ''pedrada'', como diz a rapaziada do rap e do funk. ''Diz que malocam seus facões e adagas/ Em sungas estufadas e calções disformes/ Diz que eles têm picas enormes/ E seus sacos são granadas/ Lá das quebradas da Maré'', rima ele. ''Sol, a culpa deve ser do sol/ Que bate na moleira, o sol/ Que estoura as veias, o suor/ Que embaça os olhos e a razão'', ironiza.

Falar em moçada carioca, lá está Chico Brown, de 21 anos, neto do compositor e de Marieta Severo, parceiro em Massarandupió. Ouvido absoluto, multi-instrumentista e chegado no heavy metal, o rapaz (que já fez show em BH) compôs a valsa que o avô letrou, inspirada na praia baiana frequentada pelo menino na Bahia – ''aquele piá/ aquele neguim/ aquele bacuri''.

Clara, irmã de Chiquinho e filha de Carlinhos Brown e Helena Buarque, traz ainda mais delicadeza à romântica Dueto, lançada por Nara Leão. Ao final, neta e avô brincam com os facebooks, tinders, orkuts e whatsapps da vida – as versões digitais do velho correio eletrônico.

MACHISTA Tribunais digitais, aliás, elegeram Chico o réu do ano quando ele liberou o clipe da inédita Tua cantiga. O autor de Futuros amantes foi acusado de machista pelo verso ''quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/ e de joelhos/ vou te seguir''. Em sua recém-criada conta no Instagram, o compositor reagiu: ''Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante''. Polêmicas à parte, ele pôs até Shakespeare no meio da ''confusã''”: veio do bardo inglês a referência para o verso ''ou estas rimas/ Não escrevi/ Nem ninguém nunca amou''.

Há alguns anos, Chico Buarque mandou para as redes o vídeo em que, divertido, revela surpresa por ser espinafrado na internet. Gargalha ao repetir os posts odientos. Sua Desaforos fala, aparentemente, de um amor mal resolvido. Ledo engano. Aqueles versos caem sob medida para haters e afins. ''Custo a crer/ que meros leros-leros de um cantor/ possam te dar/ tal dissabor'', canta ele, ''apenas um mulato que toca boleros''. E lamenta que os lábios delicados da amada ''roguem pragas por aí''.

Gente anti-chico e antiesquerda, certamente, vai desprezar Casualmente, parceria do compositor com o baixista Jorge Helder, com versos em espanhol. É uma declaração de amor a Havana, capital de Cuba. ''Regresaré, ojala/ Algun día a la ciudad/ Y perdidamente en sus calles voy a buscar/ Por la penumbra/ El momento fugaz/ Que no puedo olvidar''. Definitivamente, o bolerão corre risco de transformar o xingamento ''vai pra Cuba!'' em objeto do desejo....

GAY Em Caravanas, a musa da vez é Bia. Não aquela Beatriz ''de éter'' e ''de louça'' do clássico composto por ele com Edu Lobo. Esta moça aqui gosta é de moças. E nosso poeta de olhos azuis está fora, a moça lhe deu um ''toco''. ''Talvez ela dê risada/ Talvez fique encabulada/ Talvez queira me avisar/ Que no coração de Bia/ Meninos não têm lugar'', canta Chico, lamentando: ''Bia não vem me ouvir (...) é da natureza dela/ viver solta por aí''. Ele até admite ''virar menina'' para namorar essa garota. ''Chico trans''? Pode até ser munição para haters, mas é outro golaço do poeta.

Falar em gol, o samba Jogo de bola, cheio de dribles poéticos, relembra as ''feras da esfera'' de outrora, como o húngaro Puskás. Enaltece a molecada peladeira, mas não deixa de ser metáfora do futebol como espaço democrático, sobretudo nestes tempos de ódio e intolerância. Afinal, todo mundo pode – e deve – driblar. Mas sem perder a linha, como canta ele.

O novo disco é puro Chico Buarque. O comandante desta caravana sabe, como poucos, ampliar sua própria zona de conforto. Ali tem cantiga, samba-canção, lundu, blues, samba sincopado e bolero, além de ecos de funk carioca e jazz. A Seleção Chico Buarque de Holanda distribuiu muitos craques entre as nove ''posições'' – entre eles, Luiz Cláudio Ramos (maestro e produtor do álbum), Cristóvão Bastos e João Rebouças (piano), Marcos Nimrichter (acordeom), Jurim Moreira (bateria), Marcelo Costa (percussão), Hugo Pilger (violoncelo) e Guto Wirti (baixo). Na sessão ''evoé, jovens artistas'' brilham Chico Brown (guitarra), Clara Buarque (voz) e Rafael Mike (beatbox).

Por incrível que pareça, agosto tem tudo para acabar bem. Sexta-feira, dia 25, você tem um encontro com Chico. Seis anos depois de seu último disco, o nosso craque ressurge. E empoderado, como está na moda.
 
 
CARAVANAS
De Chico Buarque
Biscoito Fino
Nove faixas
Preço sugerido: R$ 34,90

MAIS SOBRE MUSICA