Memória: vamos relembrar a vida social na capital mineira no início do século passado

A história de uma cidade cheirando a tinta fresca começou a ser escrita no charme francês dos anos 1920

por Anna Marina 13/12/2017 14:15

Arquivo EM
Vista do coreto da Praça da Liberdade (foto: Arquivo EM)

Não é difícil imaginar Belo Horizonte nos anos 20. Para citar Drummond, “o mundo era pequeno e limitava-se ao norte pelo Café Estrela, na Rua da Bahia, a leste pela casa Oscar Marques, na Avenida Afonso Pena. Podia-se correr o Parque Municipal sobre essa ingênua e primitiva, uma bicicleta... A Praça da Liberdade era um assombro (o jardim plantado para o rei Alberto ver!) e todas as mulheres se vestiam no atelier da madame Penélope, trinta vezes fechado e trinta vezes aberto”. Com a cidade ainda cheirando a tinta fresca, acabada de fazer, era natural que a maior influência da nova capital fosse Paris. Os prédios neoclássicos, as avenidas largas, bem traçadas, arborizadas, faziam desse “mundo pequeno” um centro muito mais cosmopolita do que no limiar do seu primeiro centenário. Não por acaso: a França era, na época, o mais forte referencial cultural e mundano do país. Distante daqui a pelo menos 15 dias de viagem em navios pachorrentos, 
a cultura europeia era religião – e modelo para a devassidão.

Arquivo O Cruzeiro
Casa da Chácara, hoje Parque Municipal (foto: Arquivo O Cruzeiro)

Quem vai descer?

Para a inspiração não só para a arquitetura, que os italianos executavam aqui com perfeição, mas também para o comportamento mundano, social e boêmio. Nunca mais, em seus 120 anos de história, a cidade gerou um mito tão forte, uma lenda dão magnifica como o cabaré de Madame Olímpia, onde os últimos tiques da boemia eram repetidos pela rapaziada belo-horizontina.


Seu primeiro cabaré tinha o sugestivo nome de “Eden” e ficava na Avenida do Comércio, hoje Oiapoque. Era tão importante na vida noturna da cidade que motivou até um neologismo. Quando se perguntava “você desce hoje?”, estava implícito que o itinerário terminaria no cabaré de Madame Olímpia. A clientela era formada pela fina flor da política mineira, os famosos “coronéis”, que, com muita discrição, iam buscar as “meninas” que a Madame importava da Europa, genericamente chamadas de “polacas”.

Retrato do mito

Ela era a toda poderosa da noite da cidade menina – sua casa, além dos leões de chácara da porta, contava ainda também com a cobertura da polícia local, sempre pronta a acudir ao menor apito de um de seus empregados, tão logo surgisse um início de desentendimento entre a clientela. Para a moral puritana da época, não ficava bem um delegado – ou até um secretário de Estado – levar uma garrafada na cabeça durante uma briga no cabaré. Resultado: o ambiente só não era mais família do que as festas realizadas nos sobrados tradicionais da Avenida João Pinheiro por conta das “polacas”. E mais: além do lenocínio, ela explorava também o jogo. E corre a lenda de que a mobília onde dormiram os reis belgas no Palácio da Liberdade acabou no seu quarto do bordel, por obra e graça de um admirador mais inflamado.


Mas, afinal, que mulher era essa? Seu nome era Olímpia Vasques Garcia, nascida em Segóvia, Espanha. Além do Eden, que fechou, ela foi dona do Palace e depois do Montanhês que, nos anos 1940, ainda guardava um pouco da glória do primeiro estabelecimento. O escritor Pedro Nava, que era frequentador da casa, junto com o seu grupo do Café Estrela, faz dela um retrato arguto, total: “Vestia-se com simplicidade quase sórdida, não se pintava, era pálida, tinha pele de marfim ou alabastro, belos olhos muito negros, nariz fino, boca pequena, dentes perfeitos. Seria uma mulher bonita não fosse a expressão fria e cruel de sua fisionomia – tão imóvel e anímica a ponto de imitar a máscara de porcelana untada do parkinsonismo. Lembrava Mata-Hari, não a do esplendor, mas a dos retratos de identificação, frente e perfil, da Surêté de Paris. Tinha voz impaciente e esganiçada. Sua testa testemunhava sua obstinação e a pouca inteligência que não excluía a esperteza nem a velhacaria do estado. Chegara a Belo Horizonte mundana comum, exercera, juntara dinheiro, abrira sua pensão, amealhara mais, dera as primeiras danças no porão habitável do seu bordel da Avenida Oiapoque, economiza furiosamente, investira abrindo o Eden Cabaré, que fora logo de vento em popa”.

Uma vida de vagares

Arquivo O Cruzeiro
Bonde subindo a Rua da Bahia (foto: Arquivo O Cruzeiro)

Já naquele tempo, o melhor mesmo era subir Bahia e descer... Floresta. Rômulo Paes apenas colocou na letra de seu sambinha uma constatação sem segredos. Se “descer” significava ir parar na região que depois ficou conhecida como “baixo meretrício”, a vida social da cidade não ia muito mais longe. Os homens exerciam seu fascínio paquerando as moças no cinema Odeon – ou no Clube Belo Horizonte. E iam religiosamente ao Bar do Ponto e ao Café Estrela. Mas o cinema é que é a grande distração, o acontecimento régio da cidade.
A soirée, bem assim à francesa, em contraponto ao matiné, era frequentada pelos casais, formalmente. Mulheres enchapeladas e enluvadas, homens no maior “estica”. Os que seguiam a moda vestiam-se como os gângsteres de Hollywood: terno jaquetão de lapelas largas, sapato de duas cores, gravata no maior capricho, com pegador, chapéu e cabelo gomalinado.


A Rua da Bahia, onde ficava o cinema, tornava-se intransitável nas noites de estreia. A sala de espera era um burburinho de encontros, de prosas. Só não ia à Sessão Fox das noites de sexta-feira quem não tinha realmente condições para tal. O programa obedecia a um cerimonial, os grupos familiares compunham uma coreografia de chegada que se repetia a cada semana. A tradicional família mineira descia a Rua da Bahia para ver o milagre das figuras que se movimentavam na tela, milagre quase da idade da própria cidade. E é mais uma vez Nava quem dá o retrato dessa época: “De repente, diminuía o tom da conversa e ia-se cavando silêncio boquiaberto diante das beldades que desciam Bahia ou entravam na Avenida Afonso Pena acompanhadas de mães, tias, irmãos, pais – como torres – tornando-as sempre distantes e inabordáveis”.
A sociedade fechada

Além do cinema, a tradicional família mineira recebia em casa. Para tertúlias com direito a declamação, piano, licores e rebuçados servidos em pratos de porcelana... franceses. As recepções da época movimentavam toda a sociedade, como um lendário jantar seguido por  baile que a viúva de João Pinheiro deu para festejar o noivado de sua filha Virgínia com Elísio Carvalho Brito. As mesas tinham cartões assinalando os lugares de todos os convidados, distinguidos com uma quadrinha personalizada – as destinadas às moças eram recheadas com muitos galanteios – e as danças marcadas através do cotillon. A festança toda foi na casa da família, um palacete erguido na Avenida João Pinheiro através de de subscrição pública, tamanha a admiração dos mineiros por seu ex-presidente, como era chamado o governador naquela época. Bela época mesmo – onde a família de um ex-governador ganhava casa da população para poder viver condignamente...

Os anos loucos

Igino Bonfioli/Arquivo EM
Automóvel Clube, 1930 (foto: Igino Bonfioli/Arquivo EM)

Dançar charleston no Automóvel Clube ou no Clube Belo Horizonte era uma ocupação e uma preocupação dos anos 1930 – quando o Ford “ bigode” circulava nervosamente pelas ruas da cidade. Mas havia também o sofisticado English Club, que era diferente em tudo: não tinha sede, as festas eram realizadas nas casas dos associados e a única exigência para se filiar era falar inglês.


A sociedade não era pacata. Uma crônica de Carlos Drummond de Andrade goza a movimentação desse grupo privilegiado: “Pessoas inclinadas ao vício da estatística informam que, de janeiro até esta data, já beberam e dançaram em Belo Horizonte nada menos de 45 chás dançantes, com 45 fins diferentes,mas todos altamente simpáticos e meritórios. Eu não frequento estatísticas nem os chás, mas acredito em ambos. E do que me revela agora a voz fria dos algarismos, tiro conclusões altamente otimistas e consoladoras”. De gozeira em gozeira, Drummond diz: “Parece que chegou o momento de purificar o mundo, e essa purificação se fará pelas tardes de dança e chá, com um bom jazz executando as últimas novidades americanas.
É bem verdade que, simultaneamente, os nossos elegantes se vão despojando só bens terrestres e cada novo chá dançante correspondendo a uma sensível diminuição de pecúnia, pois a caridade, como disse um comunista, é o caminho mais rápido para chegarmos à pobreza universal”.

Jose Goes/Arquivo EM
Automóvel Clube, 1958 (foto: Jose Goes/Arquivo EM)

 

Os saraus das Vivacqua

 

Se as noitadas do cabaré de Madame Olímpia foram o acontecimento dos anos 20, as irmãs Vivacqua dominaram os anos 1930. Eram seis moças mais velhas e duas mais novas. E entre essas estava a que se tornou a mais famosa de todas, mas já bem dos anos 30: Luz del Fuego, ou Dora Vivacqua. A conservadora sociedade, com costumes cultivados entre montanhas, arrepiou-se toda com a chegada da família, de ótimo nível intelectual, financeiro e de uma certa forma com modos mais abertos, mais arejados, mais “praiano”.


Os saraus das irmãs Vivacqua dominaram a vida noturna da cidade e eram em tudo por tudo diferentes dos comportados jantares dançantes seguidos por bailes dos mineiros. Impossibilitadas de frequentar as rodas boêmias da cidade, as moças trataram de trazer para dentro de casa o mal-afamado Grupo Estrela”, que incluía Pedro Nava, Drummond, Abgard Renault, Emílio Moura,Milton Campos.


O livro Luz del Fuego – a bailarina do povo, de Cristina Agostinho, Branca de Paula e Maria do Carmo Brandão, dedica um capítulo a esses saraus, que ganharam posteriormente até poesia de Drummond. Devia ser um acontecimento, porque a sessão começava com um Jornal falado do Salão Vivacqua, cujo “editorial” era lido pelo então jornalista Milton Campos. Do livro, a cena: “Um zum-zum percorre o salão. Rapazes engravatados e moças vestidas de melindrosas espalham-se pelos sofás e cadeiras à volta do piano, diante do qual fica o proscênio improvisado. Os últimos acordes do Minueto de Beethoven, executado por Filó, ainda pairam o ar... Encerrando o jornal, começam as danças. Rapazes e moças procuram a duplicata dos cottilons distribuídos à entrada e descobrem seus parceiros. Esses cartões pintados por Mariquinhas, trazem desenhos de flores, pássaros, buquês, corações e mãos entrelaçados. Preso à lateral do cartão com um laço de fita, há um lápis pequenino para anotar os nomes dos pares favoritos. O sarau termina em colóquios nos sofás ou no beiral da janela, sob a vigilância de Etelvina e das outras mães, que, invariavelmente, acompanham as filhas às festas”.
Anos loucos, mas não tão loucos assim, que as moças pudessem sair sozinhas, ou se mostrar mais do que a moda determinava. Tanto é o rigor que existe até uma cartilha de uma tal de Liga da Moralidade, que tinha força para exigir do delegado de Costumes normas de comportamento dos jovens nos cinemas e até nos footings. Tanta “marcação” deu origem a uma brincadeira que virou folclore: o Grupo do Estrela botou fogo no porão da casa das Vivacqua, na esperança de ver as moças saírem para a rua esbaforidas, apenas de camisola.

Um mundo de mudanças

Arquivo EM
Cassino da Pampulha (foto: Arquivo EM)

Historicamente, os anos 1940 representaram um mundo de mudanças: a definição da posição do Brasil no conflito mundial, depois de demorado namoro de Getúlio Vargas com os nazistas, a derrota do Terceiro Reich, a socialização da Europa Central, a queda do Estado-Novo. Para Belo Horizonte, foi reservado mais um acontecimento: a Pampulha e seu cassino, uma ilha de faz de conta criada no meio de uma guerra.


Os “despachos” que chegavam do estrangeiro desfocavam as tintas da tragédia e mesmo sofrendo os pálidos efeitos do “esforço de guerra” (em lugar de gasolina, gasogênio para movimentar os carros, em lugar de farinha de trigo, fubá e maisena para os bolos, em lugar de roupas francesas, vendidas no Park Royal da Rua da Bahia, os modelos exclusivos da costureira jeitosa) a sociedade se esbaldava no Cassino da Pamplha


No salão,quase sempre, o prefeito alegre (JK), pé de valsa, responsável por tudo aquilo que o belo-horizontino encarava meio reticente: uma igreja que os padres não queriam benzer, uma Casa do Baile, um clube chamado Iate, à beira de uma represa artificial onde os barcos a vela criavam a ilusão de Deaville e um cassino, onde os maiores nomes do show bizz internacional se apresentavam todas as semanas. Tudo por causa da guerra: como não podiam atravessar o Atlântico para cantar na Europa, desciam para a América do Sul e sempre havia tempo e cachê atraente para uma paradinha numa cidade chamada Belo Horizonte.


O escritor, pintor e delegado Renato Augusto de Lima tinha como missão estar toda noite assentado em uma mesa do grill-room. Era a autoridade policial presente – mesmo que usasse smoking em lugar de chapéu de aba baixa e terno de “secreta”. Em seu livro Memória de um delegado de polícia, ele conta como era a noite mineira da época:
“A inauguração do cassino da Pampulha mobilizou a atividade mundana de Belo Horizonte. Os vestidos de grande preço ocuparam as grandes costureiras do Rio e da capital. Dior ainda era impossível com os submarinos alemães circulando. Os smokings e as casacas, cujos preços eram ainda possível de alcançar, fizeram os serões dos alfaiates da terra. Belo Horizonte, pela primeira vez, punha-se em contato com aquela fauna humana de croupiers, boleiros e carteadores de bacarat. Eles subiam e desciam as rampas das salas de jogos, vestidos de preto, rostos pálidos de vigílias, num passo lento e imponente de pompas fúnebres. As melodias que vinham do grill-room misturavam-se ao repinicar das fichas dos panos-verdes”.
Renato de Lima contou também que, volta e meia, o cassino era invadido por tripulação dos aviões de guerra que patrulhavam todo o país e que, eventualmente, desciam na base aérea da Pampulha para reabastecer. Todos se divertiam, porque quem não gostava de jogo tinha a rara oportunidade de ver e ouvir artistas que, não fosse pela guerra, dificilmente viriam fazer show na cidade. Havia de tudo um pouco: a voz folclórica de Yma Sumak, a estrela de cinema Ilona Massey, Ray Ventura e seus Colegiais.

Longo caminho

Fantástico que o cassino da Pampulha contasse toda noite com um grande público. Isso porque, com o racionamento da gasolina, um automóvel podia levar até três horas e meia para fazer esse caminho que hoje, mesmo em hora de um rush sério, não toma mais do que uns 30 minutos.


Só que os acordes do Tico-tico no fubá não conseguiram, por mais que fossem tocados nas noites do Cassino, sobrepor-se ao barulho dos torpedos alemães dirigidos contra os navios da Loyde Brasileiro. Pressionado pelas evidências, Getúlio Vargas teve que se render aos fatos e declarou guerra ao Terceiro Reich. Num dia de agosto de 1942, Belo Horizonte assistiu então, entre atônita e apreensiva, a cenas de violência que nunca mais de repetiram para não macular sua fama de cidade amena e prazerosa. O patriotismo açulado pela marginalidade tentou demolir a cidade. Foi uma noite de horrores, quando um bando de marginais, a título de retaliação, saiu pelas ruas centrais arrombando e saqueando todos os estabelecimentos comerciais que tinham nomes italianos ou alemães.


A versão mineira da Noite de São Bartolomeu procurava, mais do que decepar a cabeça dos “quinta coluna”, pilhar seus estabelecimentos, fossem eles joalherias ou prosaicas padarias, como a Savassi e a Boschi. A polícia, que demorou a aparecer, usou o método tradicional para conter a baderna: desceu o pau. Na confusão, muita gente se feriu, alguns morreram. Os prejuízos materiais foram bem maiores que as perdas humanas e o terror tomou conta da cidade, chegando até aos bairros residenciais. As famílias estrangeiras, com medo, abandonavam suas casas em busca de refúgio seguro.
Passado o susto, acalmados os ânimos, o Cassino da Pampulha continuou a ser um deslumbramento para a sociedade belo-horizontina. E era tanta a sua importância que acabou por se transformar na sala de visitas da cidade. Para lá foram levadas as personalidades que, por acaso, davam com os costados por aqui. É ainda Renato Augusto de Lima que conta: lembro-me do grande banquete realizado em homenagem ao general Marshall, o autor do plano que depois reconstruiu a Europa. A homenagem àquele que visitava este estado de penúria proverbial e crônica, no momento mais grave de nossa história, realizava-se… num cassino. Da minha mesa, no canto do restaurante, assisti ao banquete. Depois ao baile, digno de uma tela de Manet. Mas, quando acompanhei o ilustre general ao sair do Cassino, vi que seu semblante nada parecia indicar um ‘plano Marshall’ para aquele pedaço do Brasil que pouco estava se incomodando com o resto do mundo.”

 

 

“Café society”

 

Arquivo EM
Avenida Afonso Pena, anos 1930 (foto: Arquivo EM)

Cronistas sociais sempre existiram, desde os tempos de Plínio, o árbitro da elegância, que escrevia ferinamente sobre os hábitos da corte romana. Mas a pacata Belo Horizonte começou a tomar conhecimento dessa nova fórmula de jornalismo quanto Sérvulo Coimbra Tavares passou a assinar, sob o pseudônimo de Rohan (alcunha do cardeal francês) uma crônica sobre o “café society” aqui no Estado de Minas.
Não que a cidade tivesse muita coisa para contar. A vida continuava a rolar quase naquele mesmo espaço onde se movimentavam Nava e Drummod: Rua da Bahia, Afonso Pena, João Pinheiro. O mais longe que se ia, e a viagem já não era mais rápida porque tinha passado o tempo do gasogênio, era no Iate Tênis Clube, para velejar no lago criado por Juscelino ou brincar no carnaval. A vidinha social mais importante era levada entre as mesinhas da Confeitaria Elite, onde as moças casadoiras passavam a tarde entre sorvetes e flertes, sonhando estar do outro lado da rua, onde ficava o Trianon. Como acontecia no tempo das irmãs Vivacqua, mulher não podia entrar ali, reduto boêmio da época. Nem mesmo para comprar as lendárias empadinhas de galinha que a família Caldelas fazia.


O sucedâneo do cassino da Pampulha ficou sendo o Automóvel Club, onde, um dia, uma dupla de diretores bem avançados, Eduardo Borges da Costa e Francisco Longo, resolveu fazer uma boate chamada Príncipe de Gales, em homenagem àquela incógnita chamada Edward, que abdicou do trono da Inglaterra por uma divorciada americana. Foi um sucesso. Como acontecia no cassino da Pampulha, toda semana tinha um show diferente, às vezes de artistas estrangeiros. E lá em cima, no quarto andar, onde mulher também não podia entrar, o jogo corria solto, mas só no carteado. Roleta, nem pensar.
Mas, ao contrario do Cassino da Pampulha, onde quem se vestia a rigor e comprava mesa podia entrar, o Automóvel Club era uma agremiação para sócios. E, como tal, só podia ser frequentada por eles. Mas quem mandava mesmo, além dos estaturos, era a TFM, que, como aquele código de comportamento do tempo das Vivacqua, ditava as regras. Casais não sacramentados pelo matrimônio podiam desistir de ingressar naquele paraíso dourado da mundanidade. E um presidente perdeu noites de sono quando teve que mandar avisar a um importante industrial da época que não fosse ao clube com a companheira, porque seria barrado na porta. Se ele quisesse ir sozinho, tudo bem. Mas como casal, só quando regularizasse sua situação perante a lei. Ele não foi naquela noite de festa – e nunca mais. Nem quando os tempos mudaram e o convite oficial lhe foi feito. Agradeceu e dispensou o agrado.


Era dureza fazer coluna social naquela época. A moral pudica continuava a imperar.As moças já podiam sair sozinhas, mas com cuidado. Se ficavam “faladíssimas” podiam dizer adeus ao casamento, e algumas vezes até as amizades. Fumar em público, nem pensar. Bebida alcoólica, se não era o velho champanhe de guerra, só podia ser coquetel bem perfumado. Algumas poucas que se rebelaram contra esse atraso eram mantidas a distância.


Mesmo sendo válida, a tentativa de fazer as mundanidade afrancesada voltar aos salões belo-horizontinos não foi longe. Na verdade, alguma coisa de inocente havia se perdido para sempre. Aquela boemia cheia de personagens que encantou uma época e foi tema de uma geração de escritores, nunca mais foi a mesma. Em lugar de um cabaré onde os galãs mais ardorosos bebiam champanhe no sapato das cortesãs de luxo, os bares é que eram o ponto de encontro, a bebida era a cerveja ou o uísque. A americanização imposta pela vitória aliada criou hábitos mais prosaicos, menos romanescos, que de certa formam perduram.


A noite foi tomada de assalto por uma legião de figuras duvidosas, o charme e a inteligência das tertúlias e dos cotillons foram substituídos pelo ritmo alucinante da acid music. Já nem se pode percorrer a pé a Rua da Bahia – nem de dia, que dirá à noite. O crescimento da cidade matou esse seu lado alegre, fantasioso, um pouco frívolo, mas cheio de charme. Já não se divide uma taça de bebidas, mas um “papelote” de cocaína. Nem o amor se faz mais alegremente, o perigo da Aids ronda os leitos, a elegância sofisticada das mesas do bacarat substituídas pela ladainha popular do americanizado bingo.