Sempre revolucionário, Godard chega aos 90 anos

Em suas nove décadas de vida, Jean-Luc Godard influenciou a arte dos séculos 20 e 21. Novo livro de Mário Alves Coutinho analisa 14 filmes do diretor

Guilherme Augusto 02/12/2020 04:00
Christian Hartman/Reuters
O cineasta francês Jean Luc-Godard na cerimônia do Grand Prix Design Award, em Zurique, em outubro de 2010 (foto: Christian Hartman/Reuters)
Nome fundamental da história do cinema, Jean-Luc Godard chega aos 90 anos na quinta-feira (3). Nascido em 1930, na França, ele é um dos pais da Nouvelle Vague, o movimento ocorrido nas décadas de 1950 e 1960 que marcou uma reviravolta ao contrariar os padrões da indústria cinematográfica e criar o chamado filme de autor. Inquieto e revolucionário, o diretor divide opiniões ainda hoje pelas produções experimentais que desafiam quem assiste a um de seus 129 filmes.

Para o pesquisador e escritor Mário Alves Coutinho, Godard “excita” a cultura ocidental. “Nos filmes, ele fala sobre literatura, música e artes plásticas. É um artista que faz cultura frequentando várias artes. Aliás, ele pintou no início da vida, a mãe dele até chegou a fazer uma exposição dos quadros. Descobriu o cinema por volta dos 18 anos a despeito da própria família, que desprezava a sétima arte. Ao assistir às comédias italianas, percebeu que o cinema é um resumo de todas as outras artes”, explica.


LANÇAMENTO

Autor de outras três obras sobre o diretor, além de numerosos ensaios, Coutinho lança agora Jean-Luc Godard: de Acossado a Imagem e Palavra (Tipografia Musical). No livro, elege e discorre sobre 14 dos principais filmes do francês, entre eles Acossado (1960), a estreia do cineasta, e longas recentes como Adeus à linguagem (2014) e Imagem e palavra (2018), passando ainda por O desprezo (1963), Alphaville (1965), O demônio das onze horas (1965) e História(s) do cinema (1988).

“É um livro diferente, afastado das interpretações acadêmicas que tentam aproximar a obra de Godard de filosofias e outras áreas do conhecimento. Meu livro fala dos filmes a partir de um recorte mínimo diante da quantidade de obras que já fez. Dá conta de 10% da produção dele, mas eu não poderia deixar de lançá-lo no ano de uma efeméride tão importante”, comenta o autor e pesquisador.

Graduado em psicologia, doutor em literatura comparada pela UFMG com pós-doutorado no Departamento de Comunicação Social da mesma universidade, Mário Alves Coutinho escreveu Godard e a educação (Autêntica, 2013), Godard, cinema, literatura (Crisálida Editora, 2013) e Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard (Crisálida Editora, 2010).

Neles, o autor analisa a relação do cinema do francês com a literatura. No novo livro, o foco são os filmes por si. A publicação levou cerca de seis meses para ficar pronta e Mário a considera uma homenagem digna ao cineasta cuja obra é incontestável.

“O cinema moderno, em termos formais, é todo influenciado por Godard. Ele fez filmes que depois foram largamente copiados. Sem ele, talvez não existiria o Cinema Novo. O que quero dizer com isso é que a obra dele é muito importante para a história do cinema”, afirma Mário Alves Coutinho.

Jean-Luc Godard desperta tanta atenção não só por ser pessoa polêmica, sem papas na língua, mas por não ter medo de errar, acredita. “Ele descobre o que vai fazer, fazendo. O resultado disso é muito improvisação, sem medo de arriscar e tentar novas maneiras de filmar. Isso está presente tanto nos filmes como nos livros e nos textos que publicou.”

Tal característica está tão presente na trajetória de Godard que se transformou em munição para os detratores. “Existem pessoas que detestam a obra dele, acham que não é cinema, o consideram um chato incompreensível. Até compreendo a crítica, mas isso corrobora com o próprio propósito dos filmes que ele produz. Eles não foram feitos para agradar, são mais uma provocação, tanto em termos formais quanto em relação à narrativa”, acrescenta Coutinho.

A cinematografia de Jean-Luc Godard é prato cheio para compreender os séculos 20 e 21, defende o autor. O próprio História(s) do cinema percorre uma enormidade de referências e cânones para, ao longo de quatro horas e meia, comprovar que não existe uma única história do cinema. O filme é um projeto que foi sendo feito ao longo de uma década. Lá também está a história da filosofia, da literatura, da poesia, da política. Está tudo interligado. Como um poeta, ele consegue resumir tudo isso num filme”, afirma.

Jair Amaral/EM/D.A Press
Mario Alves Coutinho diz que a melhor forma de entender Godard é a %u201Cfalta de fórmulas%u201D (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

PRECONCEITO

O segredo para assistir aos filmes do cineasta francês, aconselha, é a falta de pretensões. “Não existe fórmula, mas é preciso não ter preconceitos e estar disponível ao que ele tem para mostrar”, diz Coutinho, citando O demônio das onze horas e O desprezo como porta de entrada para a obra de Godard.

Em relação ao novo livro, como bom crítico, ele afirma que espera que as pessoas primeiro assistam aos filmes para depois lerem seus textos. “Assim elas podem fazer as próprias descobertas e ter uma experiência pessoal. Ler sobre Godard é da maior importância, mas ir direto à fonte, compreender os maneirismos e influências desse cineasta revolucionário, é também uma forma de adorá-lo e deixar que suas ideias sejam cada vez mais perpetuadas”, conclui.

JEAN LUC-GODARD:
DE ACOSSADO A
IMAGEM E PALAVRA
• De Mário Alves Coutinho
• Editora Tipografia Musical
• 264 páginas
• R$ 66 (livro)
• R$ 42 (e-book)

VEJA GODARD

Telecine/divulgação
(foto: Telecine/divulgação)

NO TELECINE
A plataforma de streaming dos canais Telecine disponibilizou nove filmes do cineasta francês. O polêmico Eu vos saúdo, Maria (1985, foto) está na lista. O longa com Myriem Rousell, Thierry Rode e Philippe Lacoste conta a história de Maria, mãe de Jesus Cristo, ambientada no final do século 20. À época do lançamento, o papa João Paulo II (1920-2005) condenou o longa e foi seguido pelos católicos.

No Brasil, o governo José Sarney (1985-1990) impediu que o filme fosse exibido nos cinemas por quase três anos. A censura por motivações religiosas gerou polêmica, sobretudo por ocorrer durante o período da redemocratização.

Também estão disponíveis Uma mulher é uma mulher (1961), Uma mulher casada (1964), Salve-se quem puder (1980) e Paixão (1982).

Netflix/divulgação
(foto: Netflix/divulgação)

NA NETFLIX
Lançado em 2018, Imagem e palavra (foto) é construído a partir da colagem de materiais de origens distintas: trecho de um filme de Michael Bay, músicas, textos, pinturas e videopropaganda do Estado Islâmico retirada do YouTube. O filme estreou no Festival de Cannes e ganhou a Palma de Ouro Especial.

Ausente, Godard participou da coletiva de imprensa via chamada de vídeo. Ao ser questionado se seria um filme político, respondeu: “Não... Queria que meu filme fosse basicamente como um romance. Queria mostrar como os árabes não precisam da intervenção de outras pessoas, porque podem muito bem cuidar de si mesmos. Eles inventaram a escrita, inventaram muitas coisas. Eles têm petróleo – muito mais do que é necessário, praticamente. Então, não sei. Acho que deviam ser deixados para lidar sozinhos com as próprias questões. Não podemos ditar nada com filmes”.

Globoplay/divulgação
(foto: Globoplay/divulgação)

NA GLOBOPLAY
A plataforma disponibiliza Adeus à linguagem (foto), filme de 2014. Intrigante narrativa visual, conta a história de um homem e uma mulher que dividem a intimidade em uma casa, onde mora também um cachorro. Ela é casada, mas não há qualquer informação sobre sua vida fora daquele local. Os dois conversam sobre a linguagem sob o ponto de vista filosófico, enquanto o cão a tudo observa. Exibido no Festival de Cannes, o longa ganhou o Prémio do Júri. A obra de Godard também foi eleita o melhor filme pela National Society of Film Critics Award.

MAIS SOBRE CINEMA