Green book e Conduzindo Miss Daisy têm abordagens semelhantes sobre questão racial

Lançados com 30 anos de distância, dois filmes vencedores do Oscar trazem muitos pontos em comum, incluindo um grande filme de Spike Lee como competidor

por Mariana Peixoto 03/03/2019 11:15
Paris Video/Divulgação
Jessica Tandy e Morgan Freeman em 'Conduzindo Miss Daisy' (foto: Paris Video/Divulgação)

“Você viu suas cartas, não viu?”, perguntou Daisy Werthan.

“Ah, sim, sim. Eu sei que o meu ABC é muito bom, só não sei ler”, respondeu Hoke Colburn.

“Pare de dizer isto, você está me deixando louca! Se você conhece as cartas, você pode ler. Você apenas não sabe que pode ler”, retruca Daisy. 

“Senhora?”, pergunta Hoke.“Eu ensinei algumas das crianças mais estúpidas que Deus já colocou na face desta Terra e todas elas poderiam ler bem o suficiente para encontrar um nome em uma lápide”, diz Daisy.
(Conduzindo Miss Daisy, 1989)

 

“O que você está fazendo?”, pergunta Don Shirley.

“Uma carta”, responde Tony Lip.

“Parece mais um bilhete de resgate. Posso? “Querida Dolores”, lê Shirley, soletrando corretamente (Q-U-E-R-I-D-A). Ele continua a ler: “Estou me encontrando com todos os principais cidadãos da cidade. Pessoas que usam palavras grandes, todas elas. Mas você me conhece, eu me dou bem. Eu sou um bom enrolador. Enquanto escrevo esta carta, estou comendo batata frita. Estou começando a ficar com sede. Lavei minhas meias e as enxuguei na TV. Eu deveria ter ... trazido (escrito erradamente) ... o ferro ...” Ao ler este trecho da carta, Shirley se vira para Lip e diz: “Você sabe que isso é patético, certo?”
(Green book – O guia, 2018)

Universal Pictures/Divulgação
Viggo Mortensen e Mahershala Ali em 'Green book' (foto: Universal Pictures/Divulgação)

Os dois diálogos reproduzidos acima pertencem a duas produções vencedoras do Oscar de melhor filme. Conduzindo Miss Daisy (1989), de Bruce Beresford, levou ainda outras três estatuetas – atriz (Jessica Tandy), roteiro adaptado e maquiagem. Green book – O guia (2018), de Peter Farrelly, que no último domingo (24) sagrou-se o grande vencedor da 91ª edição do prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, ganhou também as estatuetas de ator coadjuvante (Mahershala Ali) e roteiro original (Nick Vallelonga, Peter Farrelly e Brian Currie).

Desde que a comédia dramática estrelada por Viggo Mortensen (como o motorista branco) e Mahershala Ali (como o passageiro negro) foi lançada, não faltaram comparações com o longa de 30 anos atrás. O paralelo acabou se intensificando após o discurso do diretor Spike Lee, premiado pelo roteiro adaptado de Infiltrado na Klan, que concorria também a melhor filme. “Toda vez que tem alguém dirigindo, eu perco”, afirmou Lee na cerimônia.

No ano em que Conduzindo Miss Daisy (sobre a amizade travada entre um motorista negro e uma passageira branca) venceu, Lee também havia lançado um grande longa. Faça a coisa certa concorreu (e não levou) nas categorias de ator coadjuvante e roteiro original e nem chegou a ser indicado a melhor filme, no que hoje se considera uma injustiça histórica do Oscar. Na época, os dois não bateram de frente, já que Faça a coisa certa não foi indicado a melhor filme.

MOTORISTA
S Trinta anos depois daquela noite, pode-se dizer que o vencedor deste ano é um Conduzindo Miss Daisy às avessas. O longa de Beresford é ambientado no Sul dos Estados Unidos nos anos 1950. Um motorista negro (Hoke Colburn, papel de Morgan Freeman) começa a trabalhar para a senhora judia Daisy Werthan (Jessica Tandy). Já em Green book, um motorista branco de origem italiana (Mortensen, indicado ao Oscar de melhor ator) conduz o pianista clássico negro Don Shirley (Mahershala Ali) numa turnê pelo Sul dos Estados Unidos, nos anos 1960.

Mesmo que três décadas separem as duas produções, as narrativas (ainda que os papéis de patrão e empregado sejam invertidos) têm muitos pontos em comum. Apresentam um retrato sentimental do racismo no mesmo período da história (que corresponde ao auge dos movimentos pelos direitos civis) e também na mesma região (o Sul, onde a segregação racial era mais acirrada).

Também são produções convencionais na forma, que têm como maior trunfo as atuações. Os dois patrões, no primeiro momento, ficam desagradados na presença de seus motoristas, com quem acreditam não ter nada em comum. Até situações comuns – como as apresentadas acima, que mostram a irritação dos patrões frente à ignorância dos empregados – os dois filmes trazem.

Em Conduzindo Miss Daisy e Green book as relações profissionais acabam se transformando em grandes amizades, que suplantam as diferenças. Ou seja, são filmes que trazem uma mensagem de conciliação, o que desperta uma boa sensação no espectador. A escolha da Academia de Hollywood em premiar Green book num ano em que Spike Lee também retratava a parceria entre um negro e um branco, mas, neste caso, para investigar a Klu Klux Klan, mostra que, mesmo passados 30 anos, há coisas que ainda não mudaram na indústria do cinema.

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