Diretor de 'Central do Brasil' diz que WhatsApp inviabilizaria o roteiro de seu filme

Ao comentar os 20 anos do longa, Walter Salles acredita que a era medieval seria uma forma adequada de retratar no cinema o atual momento de divisão do país

por Carlos Marcelo 07/12/2018 11:34
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(foto: Reprodução Internet )

A jovem de 20 anos surge com os óculos embaçados e o rosto umedecido por lágrimas. Pergunto o que aconteceu. “Finalmente, acabei de assistir a Central do Brasil pela primeira vez”. Não é preciso dizer mais nada. Duas décadas depois do lançamento, o longa-metragem de Walter Salles continua a provocar reações de empatia e catarse. 

Uma cópia restaurada está sendo exibida em festivais (São Paulo, Rio, Recife) e foi lançada uma nova edição em DVD (incluindo extras como a gênese do filme, o documentário Socorro Nobre, de 1995). Em diversos formatos e telas, Dora e Josué vivem. Ainda estão aqui.

Se o poder de emocionar permanece intacto, outras coisas mudaram consideravelmente desde 1998. Com as trocas frenéticas de mensagens via WhatsApp e outras redes sociais, Dora (na interpretação colossal de Fernanda Montenegro, Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim e indicada ao Oscar, que preferiu premiar a atuação esquecível de Gwyneth Paltrow, em Shakespeare apaixonado) teria dificuldades de encontrar pessoas dispostas a pagar para que ela escrevesse cartas para seus familiares, como faz o garoto Josué (o então estreante Vinicius de Oliveira, que se tornou ator profissional, com dezenas de trabalhos no cinema e na TV).

O Brasil também mudou bastante, reconhece Walter Salles, em entrevista exclusiva ao Estado de Minas. “Naquele momento parecia que o país poderia finalmente sonhar com dias melhores. Hoje, estamos mais próximos dos anos descritos em Terra estrangeira”, afirma o diretor, citando o longa-metragem que dirigiu em 1995 com Daniela Thomas, sobre brasileiros que partem para o exílio em Portugal. A seguir, o cineasta carioca comenta aspectos de seu filme mais aclamado, vencedor de 50 prêmios internacionais. Fala também sobre o curta-metragem que filmou em Mariana a respeito dos atingidos pela lama da Samarco e detalha um de seus próximos projetos: a adaptação de um romance recente de Marcelo Rubens Paiva (autor de Feliz ano velho) sobre a perda da memória.


Seu filme tem o país no título. Qual era o Brasil que o filme representava em 1998 e qual é o país que vivemos em 2018?
Central do Brasil foi pensado depois de décadas de ditadura militar e do caos que foi o desgoverno Collor. Parecia, naquele momento, que o país poderia finalmente sonhar com dias melhores. A jornada de Dora, a personagem de Fernanda Montenegro, era essencialmente de ressensibilização. Hoje, estamos mais próximos dos anos descritos em Terra estrangeira, me parece.

Assim como Josué (Vinicius de Oliveira), o brasileiro continua à procura de um pai?
Josué parte em busca de um pai, mas também de um país. Não o encontra, mas se reconecta com os irmãos, Isaías e Moisés. Em outras palavras, o menino encontra uma fratria possível. Foi essa fratria que se rompeu nessa última eleição.

Fernanda Montenegro perdeu o Oscar de melhor atriz ou o Oscar perdeu Fernanda Montenegro?
Não sou um observador imparcial, evidentemente, mas opto pela segunda opção por uma razão simples: atrizes tão excepcionais quanto Fernanda Montenegro são raríssimas. Fernanda não está só: é preciso lembrar que um filme extraordinário como Touro indomável (de Martin Scorsese) também não ganhou o Oscar. O melhor juiz, nessas questões, me parece ser o tempo.

Em 1998, em Berlim, você afirmou que, além de homenagear os criadores do Cinema Novo, Central do Brasil nascia de uma “vontade de dialogar com o jovem cinema brasileiro, aqueles realizadores que começam agora a filmar, reinventando e dando prosseguimento ao sonho possível e necessário”. Vinte anos depois, esse diálogo foi estabelecido? O que se concretizou e o que ficou apenas no sonho?
Aprendi com José Carlos Avellar (1936-2016) que nenhum filme nasce sozinho, está sempre grávido de toda a cinematografia que o precedeu. No Festival do Rio deste ano, vi a cópia restaurada de Rio 40 graus, obra-prima de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018). Não há filme que se proponha a buscar um reflexo da realidade e da geografia humana do Brasil que não tenha bebido nessa fonte, consciente ou inconscientemente. Na produtora que tenho com meu irmão João (Moreira Salles, diretor de documentários como Entreatos e No intenso agora), tivemos o privilégio de aprender e colaborar com mestres como Nelson Pereira e Eduardo Coutinho (1933-2014), e jovens cineastas como Eryk Rocha, Flavia Castro, Karim Ainouz, entre muitos outros. Penso que a cinematografia de um país só é realmente forte quando diversas gerações filmam ao mesmo tempo, e nos oferecem reflexos diversos do país.

O que seria de Central do Brasil se você não tivesse parado para engraxar os sapatos no Aeroporto Santos Dumont e encontrado Vinicius de Oliveira?
Um outro filme, certamente menos interessante. Vinicius foi o fio-terra que tornou Central do Brasil possível. Além do grande talento que tem, Vinicius conhecia a matéria-prima do filme como poucos.

O WhatsApp e outras redes sociais inviabilizariam o roteiro original, construído a partir da importância da escrita e do envio de cartas?
Possivelmente. Quando entrevistei o cineasta chinês Jia Zhangke para o documentário que dirigi sobre ele, Um homem de Fenyang (2014), ele disse: “Hoje, todos têm acesso a milhares de blogues, mas quem está ouvindo? Quem está prestando atenção?”. Na verdade, ninguém – a não ser que a mensagem ratifique aquilo que o leitor já sabe. Formam-se, assim, ilhas em que são reforçadas as convicções que as pessoas já têm. Estimula-se a aprovação incondicional ou o ódio ao que está sendo dito. Esse terreno é fértil para a transmissão de informações simplistas e binárias – como vimos na eleição. Aliás, o fato de o Facebook publicar um anúncio informando como detectar fake news no dia da votação é algo que parece sair de um programa de humor negro. É como se uma partida de futebol tivesse ficado sem juiz até os 90 minutos do segundo tempo, e só naquele momento enviam um bandeirinha ao campo.

Central do Brasil foi visto por 1,5 milhão de espectadores nos cinemas brasileiros. Acha que seria possível repetir esse número nos dias de hoje? Como explicar a redução significativa de público nos últimos anos?
A frequência ao cinema só não caiu nos países que se preocupam com a formação de público desde a infância, como é o caso da França. Formar um público interessado na diversidade é a única forma de reverter essa tendência. Mas a quem interessa formar um público crítico, com acesso a informações complexas?

Aceitaria fazer filmes produzidos pela Netflix, como fizeram recentemente Alfonso Cuáron e Martin Scorsese, entre tantos outros diretores? Quais as vantagens e problemas trazidos pelo hábito de assistir a filmes e séries em streaming?
Vi o ótimo Roma, do Cuarón, na tela grande, no encerramento da Mostra de SP. Foi uma experiência impactante, um raro filme sobre a questão de classe na América Latina. Roma vai entrar em cartaz nos cinemas, em diferentes países. Se um filme puder ser visto de diversas formas e ainda preservar a possibilidade de chegar aos cinemas, mesmo que por pouco tempo, então me parece uma experiência interessante. Por outro lado, nem todos os filmes são amplos como Roma. Para os filmes menores, o streaming pode ser uma experiência meramente confidencial. Repensar a sala de cinema, trazer o cinema de volta para o centro do debate, é algo que está sendo feito em diferentes países. É um momento difícil para o cinema, mas é bom lembrar que, quando surgiu a fotografia, decretou-se a morte da pintura. Quando chegou o cinema, decretou-se a morte do teatro. Quando chegou a TV, decretou-se a morte do cinema. Uma coisa, no entanto, nunca mudou: a necessidade e o desejo, desde Lascaux e Altamira, de os homens deixarem um reflexo de seu tempo.

Você dirigiu um curta-metragem (A terra treme) que tem a tragédia de Mariana como pano de fundo. O que mais o impressionou ao percorrer o local do desastre e ao conhecer as vítimas da lama?
A impunidade. Já se vão três anos desde a tragédia de Mariana. Milhares de pessoas tiveram suas vidas dilaceradas, um rio inteiro emudeceu – o Rio Doce. Pouco mudou nesses três anos. A lama continua lá. Uma parte significativa dos estudos que estavam sendo feitos por universidades sobre os efeitos da tragédia foram suspensos por falta de verbas. Como os atingidos fazem questão de afirmar, se não fosse um jovem promotor de Mariana que enfrentou a Samarco, Guilherme de Sá Meneghini, a sensação de orfandade seria absoluta.

Um de seus próximos filmes é a adaptação de Ainda estou aqui, romance de Marcelo Rubens Paiva, que, entre outros temas, trata da importância da preservação da memória. O que o fez escolher esse projeto?
Em primeiro lugar, o humanismo do livro me tocou profundamente. É a história de uma mulher que luta durante décadas para descobrir como o marido foi assassinado. Quando as informações finalmente emergem, essa mulher começa a sofrer do mal de Alzheimer. No momento em que o país recupera parte de sua memória coletiva, ela começa a perder a sua própria memória. É um tema fascinante, que ilumina parte da história recente do Brasil.

Josué queria que Dora escrevesse uma carta para o pai dele. E o que você escreveria para o seu filho ler daqui a 20 anos?
Por coincidência, fiz um filme-carta para meu filho (Vicente) quando ele tinha 6 meses, e que se chama Carta a V. Hoje, provavelmente escreveria uma carta em que seria cético sobre o país, mas não seria pessimista sobre o mundo em que ele viverá.

Dos gêneros que você já filmou, qual seria o mais adequado para retratar na ficção o Brasil de 2018? Policial, drama, road movie ou terror?
Seria um filme sobre a era medieval, provavelmente.

O que Salles viu (e gostou) em 2018

Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos (cópia restaurada)
O início da modernidade no cinema brasileiro, obra-prima absoluta. Toda uma geografia humana carioca, brasileira, ganha voz no cinema.

Pixote, de Hector Babenco (cópia restaurada)
Um marco extraordinário da nossa cinematografia. Um filme dilacerante sobre a infância e a inocência perdidas.

Lazzaro Felice, de Alice Rohrwacher (Itália)
Filme de uma sensibilidade cortante, que retoma o melhor do cinema humanista italiano. Ao mesmo tempo fabular e agudamente contemporâneo.

Sedução da carne, de Júlio Bressane (Brasil)
Um filme de uma pertinência rara, por um dos mais brilhantes pensadores do cinema mundial.

Roma, de Alfonso Cuarón (México)
O filme mais pessoal e inquieto do talentoso realizador mexicano. E, ao mesmo tempo, o mais amplo.

Depoimento

“O Janela (festival) tem seção importante da sua programação uma seleção anual de filmes de arquivo e clássicos, que já se tornaram essenciais como programação. Misturamos descobertas e redescobertas na tela do São Luiz, um palácio de 1952 todo original e projeção 4K. Central do Brasil é uma crônica brasileira extremamente bem realizada sobre um país de pais ausentes, marcado pela violência e onde só a delicadeza funciona. Parece fazer um bem danado às pessoas como cinema de lágrimas de grande qualidade. Programar Central foi importante pelos 20 anos do lançamento, pela restauração e também pela nossa defesa de o Brasil valorizar seus grandes filmes do passado.”

Kleber Mendonça Filho, cineasta, autor de longas-metragens como O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), diretor artístico do festival 
Janela Internacional de Cinema do Recife

Serviço
Central do Brasil
DVD comemorativo dos 20 anos de lançamento do filme de Walter Salles.

Principais filmes

Terra estrangeira 
(1995, com Daniela Thomas)
Central do Brasil (1998)
Abril despedaçado (2001)
Diários de motocicleta (2004)
Linha de passe (2008)
On the road: na estrada (2012)
Jia Zhangke: um homem de Fenyang (2015)

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