Bernardo Bertolucci soube traduzir política, sexo e psicanálise em cinema

Cena impactante de Último tango em Paris, lançado em 1972, causa polêmica até hoje

por Mariana Peixoto 27/11/2018 08:00
Valerie Macon/AFP
(foto: Valerie Macon/AFP)

Há cinco anos, questionado sobre como gostaria de ser lembrado, o cineasta italiano Bernardo Bertolucci respondeu prontamente: “Não me importa”.

O anúncio da morte do mestre do cinema italiano, ontem, aos 77 anos, em sua casa em Trastevere, Roma, em decorrência de um câncer, trouxe à tona as diversas facetas do realizador. Diretor, produtor, roteirista, Bertolucci pode ser lembrado de diferentes maneiras. Seus filmes – duas dúzias, entre curtas e longas, documentários e ficção – falam por ele.

Foi polemista em Último tango em Paris (1972). A cena de sodomia com os personagens de Marlon Brando e Maria Schneider gerou tamanha controvérsia que Bertolucci respondeu por ela até recentemente. Schneider contou não saber da icônica “cena da manteiga”.

O marxista Bertolucci levou a política para tramas que tinham a história da Itália como pano de fundo: do drama amoroso Antes da revolução (1964) – onde ele próprio pode ser visto como o burguês que enxergou no proletariado seu ideal de futuro – ao épico 1990 (1976), em que acompanhou os movimentos sociopolíticos da Itália na primeira metade do século 20.

Foi minimalista e grandioso. Levou imensas plateias a se deleitarem com cenários exóticos” de O último imperador (1987) e O pequeno Buda (1996). Ao mesmo tempo, redescobriu que pequenos dramas pessoais podiam levantar grandes questionamentos (Os sonhadores, 2003).

Sexo, política e psicanálise foram temas caros a Bertolucci. Nascido em 16 de março de 1941 em Parma, Nordeste da Itália, ele cresceu em um ambiente rico e intelectual. Iniciou sua paixão pelo cinema com La dolce vita (1960), de Federico Fellini. O pai, poeta, professor de história e crítico de cinema, presenteou-o, aos 15 anos, com a primeira câmera 16mm. Foi também o pai, Atílio Bertolucci, quem o apresentou a Pier Paolo Pasolini, que lhe abriu as portas dos estúdios – Bertolucci foi assistente dele em Accattone – Desajuste social (1961).

Entre os prêmios que recebeu estão o Leão de Ouro no Festival de Veneza (2007), a Palma de Ouro honorária no Festival de Cannes (2011) e os Oscars de melhor diretor e roteiro, dividido com Mark Peploe (1988).

Pasolini, Luchino Visconti, Roberto Rosselini, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni foram embora há mais tempo. Há pelo menos uma década Bertolucci ocupava o espaço de último realizador italiano com projeção mundial. Espaço, aliás, que ocupava sobre uma cadeira de rodas, consequência de uma cirurgia de hérnia de disco.

Seu último filme foi a participação em Future reloaded, lançado em 2013, nos 70 anos do Festival de Veneza. Setenta diretores participaram do projeto. Bertolucci filmou seu dia a dia de cadeirante nas ruas irregulares do Trastevere. Como pano de fundo, o cantor francês Charles Trenet canta: “Estou feliz, tenho tudo e não tenho nada”. (Com agências)

O melhor de Bertolucci

. Os sonhadores (2003)
Maio de 1968, França. O estudante americano Matthew (Michael Pitt) conhece os gêmeos Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel). O trio partilha não só a paixão pelo cinema, como também o amor e o sexo. É uma espécie de testamento do cineasta para os jovens.

. Beleza roubada (1996)
Ainda que falado em inglês, o filme marca o retorno do diretor à Itália e também a um projeto mais intimista, depois da fase das superproduções iniciada com O último imperador. Depois do suicídio da mãe, a jovem Lucy (Liv Tyler) viaja para a Toscana para tentar se conectar com o passado e acaba descobrindo o amor.

. O último imperador (1987)
Os nove Oscars consagram a carreira do cineasta, que resgata a figura de Puyi para mostrar a passagem da China do feudalismo para o mundo moderno. O último imperador da China, que subiu ao trono antes dos 3 anos, morreu como jardineiro em Pequim.

. A tragédia de um homem ridículo (1981)
Ugo Tognazzi é Primo Spaggiari, industrial cujo filho é raptado por terroristas. Só que há dois poréns: o homem de negócios está à beira da falência; sequestrado e sequestradores são cúmplices. Foi o  último filme italiano de Bertolucci antes de se dedicar a grandes produções internacionais.

. 1900 (1976)
O épico de pouco mais de cinco horas de duração acompanha 45 anos da vida de dois amigos: o filho de um camponês (Gérard Depardieu) e um herdeiro de terras (Robert De Niro). O drama faz  retrospectiva histórica da Itália do início do século 20 ao fim da Segunda Guerra.

. Último tango em Paris (1972)
Responsável por lançar Bertolucci internacionalmente, o filme mostra um controverso olhar sobre os jogos de sedução e perversidade entre dois estranhos, interpretados por Marlon Brando e Maria Schneider. Foi censurado em vários países. No Brasil, o longa só foi liberado em 1979.

. O conformista (1970)
Baseado no romance de Alberto Moravia, acompanha o jovem Marcello (Jean Louis Trintgnant). Ao aderir ao fascismo, ele é incumbido de eliminar, em Paris, um professor que fugiu da Itália após o início do regime de Mussolini.

. Antes da revolução (1964)
Filme inspirado pela Nouvelle Vague, acompanha o jovem intelectual Fabrizio (Francesco Barilli), alter ego de Bertolucci. A repulsa ao modo de vida burguês o leva a terminar o noivado com uma moça de boa família e dar início ao caso com a tia. O tema do incesto se tornou recorrente na obra do cineasta.

Filmografia

1962 – A morte
1964 – Antes da revolução
1966 – Il canale
1967 – La via del petrolio
1968 – Partner
1970 – A estratégia da aranha
1970 – O conformista
1971 – La salute à malata
1972 – Último tango em Paris
1976 – 1900
1979 – La Luna
1981 – A tragédia de um homem ridículo
1984 – L’addio a Enrico Berlinguer
1985 – Cartoline dalla cina
1987 – O último imperador
1989 – 12 registi per 12 città
1990 – O céu que nos protege
1993 – O pequeno buda
1996 – Beleza roubada
1998 – Assédio
2002 – Ten minutes older: The cello
2003 – Os sonhadores
2012 – Eu e você
2013 – Venice 70: Future reloaded



Sem perdão

Antes do movimento #Metoo e do caso Weinstein, Último tango em Paris (1972) e a cena forte de sodomia se tornaram um símbolo da violência sexual no cinema. Maria Schneider, com 19 anos, interpreta a garota que vive tórrida paixão com um viúvo americano de passagem por Paris (Marlon Brando). Duro e mórbido, esse encontro atinge o ápice na cena de sexo não consensual em que o casal usa um tablete de manteiga como lubrificante.

Segundo Maria, nem Brando nem Bertolucci a alertaram. Em entrevista ao Daily Mail em 2007, contou que suas “lágrimas eram verdadeiras” no filme. “Senti-me humilhada e, para ser sincera, tive um pouco a impressão de ser violentada por Marlon e Bertolucci”, declarou ela, que morreu em 2011.

Ao saber da morte da atriz, Bertolucci disse que “teria querido lhe pedir perdão”. “Maria me acusava de ter roubado sua juventude. Somente hoje pergunto-me se isso em parte não era verdade. Na verdade, ela era jovem demais para poder segurar o impacto que o imprevisível e brutal sucesso do filme teve”, afirmou. (AFP)

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