Crítica: 'O processo' expõe atores e papéis no teatro político do impeachment de Dilma

Documentário de Maria Augusta Ramos sobre o impeachment desvenda o drama brasileiro por trás da deposição da presidente e aponta para um país em chamas. Filme está em cartaz em BH

por Silvana Arantes 03/06/2018 08:30

A documentarista Maria Augusta Ramos deu ao seu longa sobre a deposição da presidente Dilma Rousseff o nome de O processo. Poderia tê-lo chamado de O teatro, no melhor sentido. Não são poucas as vozes (dentro e fora do filme) que classificam como uma farsa jurídica o rito de impeachment que destituiu da Presidência da República do Brasil a primeira mulher a ocupar esse cargo na história do país.


Contudo, se O processo se concentrasse em provar essa tese, seria um filme limitado –a um só ponto de vista e a um único aspecto de um período histórico no qual convergem os múltiplos pontos de fricção da vida social brasileira. O que Maria Augusta Ramos alcança com esse documentário é expor os diversos atores e seus papéis nessa trama, descortinando um enredo muitíssimo mais amplo do que o impeachment, por meio do recurso linguístico de tomar a parte pelo todo.

A parte, no caso, é o Congresso Nacional, onde se desenrolam as diversas etapas do julgamento, captadas com atenção e inteligência pela diretora por trás das câmeras de O processo. O fato de ter tido acesso aos bastidores da preparação da defesa de Dilma Rousseff na Comissão Especial do Impeachment deu à cineasta a chance de levar o espectador a um passeio pelas coxias e pelas salas de ensaio, além de poder ouvir conversas telefônicas de membros do “elenco”.

NO FOCO FILMES/DIVULGAÇÃO
(foto: NO FOCO FILMES/DIVULGAÇÃO)


DERROTA A visão torna claro o empenho dos aliados da presidente em dilatar os tempos de discussão. Sabedores de antemão de que serão vencidos no final, a alternativa que lhes resta é adiar a derrota. Talvez a maior revelação do documentário esteja contida no trecho que compreende os 180 dias de afastamento de Dilma Rousseff. Numa reunião com o núcleo petista, a senadora Gleisi Hoffmann diz: “Vamos falar sério aqui, entre nós. Se a gente voltar, não tem condições de governar. Ela não tem apoio”.

O impacto dessa afirmativa só rivaliza com um discurso de Gilberto Carvalho a um grupo mais amplo de partidários, diante do qual ele faz a autocrítica dos governos petistas. Em síntese, o ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência afirma que as administrações do PT descuidaram dos pobres, favoreceram os ricos e “naturalizaram os métodos de fazer política”. Ele cita “um quase prazer de dizer não aos nossos” e “uma triste inflexão aos poderosos” como comportamento de ministros petistas e se ressente de o primeiro governo Lula ter sido o “que mais fechou rádios comunitárias”, enquanto distribuía concessões e verbas publicitárias para a mídia tradicional.

Pertence ainda à senadora Gleisi Hoffmann outro grande momento do filme, que é o registro de sua volta à comissão após a prisão de seu marido, o ex-ministro Paulo Bernardo. Aqui, como em todo o filme, Maria Augusta Ramos não conduz entrevistas ou insere comentários explícitos. Ela apenas dirige sua câmera para o campo que as equipes de TV costumam ignorar. São os chamados “tempos mortos” –os abraços antes de tomar seu assento, as trocas de olhares, os momentos de silêncio e imobilidade  – que dão aos “personagens” sua dimensão humana. Essa expressão é em geral usada para se referir a indivíduos especialmente vulneráveis e falhos. A especificidade de O processo consiste em que, ao deixar transparecer a “dimensão humana” de seus “personagens”, o filme os recoloca na condição de indivíduos com preocupações particulares e não exclusivamente interessados em salvar o país ou em pilhá-lo –a depender de como se queira enxergar sua conduta pública.

RELAXAMENTO
A consciência dos “atores” de que estão em cena é evidenciada em momentos hilários (ou deprimentes, a depender de como se queira enxergar) como aquele em que a advogada Janaina Paschoal faz exercícios de relaxamento muscular antes de tomar a palavra. Ou quando o senador Raimundo Lira, presidente da Comissão do Impeachment, interrompe a reunião com uma determinação prosaica. Ele exige a troca da campainha usada para alertar ou repreender os detentores da palavra por outra mais sonora, que esteja, literalmente, “à altura desse momento histórico do Brasil”.

O fato de Maria Augusta Ramos não tecer comentários explícitos às cenas que documenta não quer dizer que ela não tenha um juízo crítico (assim como todos têm ou ao menos deveriam ter) sobre aquilo que vê. A perspectiva da cineasta se insinua, em geral, nas imagens intercaladas às cenas de maior movimentação no Congresso.

Pouco depois de introduzir o tema e o título do filme, a diretora fecha o plano num pedaço do muro construído na Esplanada dos Ministérios para separar manifestantes pró e contra o impeachment. E assim a cena fica tomada por uma estrutura improvisada e precária, que se mantém de pé ancorada em pedaços de madeira, tendo ao fundo um prédio-símbolo da república.

Ao longo de O processo, surgirão ainda imagens como a de passageiros num ponto de ônibus, carros estacionados, um cão e um segurança vagando por um corredor vazio, repórteres e cinegrafistas numa frenética corrida por um lugar de espera por notícias. Se o espectador estiver atento, perceberá que elas não estão ali destituídas de sentido ou de relação com o conjunto da narrativa.

Discursos da presidente nos momentos cruciais do julgamento e as técnicas de seus apoiadores (gritos de guerra) e detratores (buzinaços) também estão presentes, assim como o embate ideológico e retórico entre os advogados Janaina Paschoal e Luiz Eduardo Cardozo, que compõem o entrecho “filme de tribunal”. Nesse aspecto, O processo seleciona com argúcia os melhores (ou piores, a depender de como se queira enxergar) desempenhos de cada um.

FORMA Um ponto central da argumentação de Cardozo em relação ao andamento dos trabalhos é que há uma disparidade entre “a forma e a substância”, ou seja, o processo de impeachment teria assumido a forma de um rito legal, ao mesmo tempo em que desprezava fundamentos do direito. A forma serviria apenas para dar aparência de legalidade a algo que não o é.

Maria Augusta Ramos incorpora a ideia de “forma e substância” ou “texto e gesto” ao seu filme, no momento em que consegue justapor a cena e o bastidor. O longa é hábil também em captar reações que demonstram que, mesmo num teatro em que cada um conhece bem o seu papel, os personagens não estão isentos de ser tomados por uma emoção genuína.

É notável, por exemplo, a força da expressão (silenciosa) do senador Antonio Anastasia, quando Luiz Eduardo Cardozo analisa seu trabalho como relator da Comissão Especial do Impeachment, para concluir que a “paixão partidária” não permitiu que o “jurista culto, brilhante” chegasse a uma conclusão coerente com “a busca da verdade, da justiça e da democracia”.

É largamente sabido por quem quer que vá assistir ao filme que a conclusão do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff foi sua destituição. A conclusão de O processo, que avança até a votação da reforma trabalhista proposta pelo governo Temer, é o menos sutil e mais impactante comentário de Maria Augusta Ramos à situação que ela documenta nesse filme.

Se Entreatos (2004), o documentário de João Moreira Salles sobre a vitoriosa campanha presidencial de Lula em 2002, chega ao fim com o candidato recém-eleito indo em direção aos braços do povo, O processo termina com uma imagem em que uma expectativa frustrada e uma revolta mal contida se traduzem em cinzas.

MAIS SOBRE CINEMA