Felipe Hirsch traz em Severina um filme atemporal sobre o amor

História se passa em Montevidéu, no Uruguai. Nos últimos anos, o diretor mergulhou intensamente na latinidade, com a tetralogia Puzzle e A tragédia e A comédia latino-americana

por Estadão Conteúdo 22/04/2018 06:00
RT Features/Divulgação
(foto: RT Features/Divulgação )

Algo de mágico está se passando com o cinema brasileiro autoral em 2018. Arábia, da dupla Affonso Uchoa e João Dumans, embala uma discussão sobre a classe trabalhadora, que vem do ano passado, numa prosódia mineira que fica feito música no ouvido do espectador. E isso ocorre no momento em que o diretor Felipe Hirsch propõe, com Severina, outro filme que se coloca à margem das questões políticas do tempo para falar de amor. Severina parece deslocado, atemporal.

O protagonista, Javier Brotas, tem essa livraria na parte velha da cidade (Montevidéu) onde amigos se reúnem para falar de livros. Ele admite que fazer um filme fora de espírito do tempo (zeitgeist) termina colocando questões que permanecem dentro da atualidade. “Severina quer ser só um filme de amor, mas o amor, como dizia François Truffaut, é um tema muito vasto e termina englobando os demais.” O livreiro se envolve com a garota que rouba livros. Sente ciúmes, porque descobre que ela rouba outras livrarias e vive com um homem mais velho – um suposto avô. “As coisas não são simples”, avalia Hirsch. “As livrarias de rua estão acabando, a América Latina que o filme retrata talvez não exista mais.”

O que existe é o fascínio de Javier Drolas, o livreiro, por Ana (Carla Quevedo). É o mesmo fascínio que o cineasta experimenta por sua atriz. “Foi a minha mulher que me falou dela, elogiando seu trabalho na série Show me a hero, da HBO. A Carla também trabalhou no filme O segredo dos seus olhos, que venceu o Oscar. Ana é fascinante porque permanece um enigma. Suas motivações nunca são muito claras. Roubar os livros talvez seja a grande aventura da vida para ela. E, ao fazê-lo, ela enrola, seduz os livreiros. De qualquer maneira, não creio que faça isso de forma consciente.”

Nos últimos anos, Felipe Hirsch mergulhou intensamente na latinidade, com a tetralogia Puzzle e A tragédia e A comédia latino-americana. Escreveu uma série de TV ainda inédita com 20 autores da América Latina, e foi por meio dela que chegou a Rodrigo Rey Rosa. Hirsch conta que o autor de Severina foi estudar cinema em Nova York, mas largou a escola. Em Tânger, tornou-se amigo do também escritor John Bowles, que foi quem o apresentou ao mundo anglo-saxão das letras. Roberto Bolaño sempre foi louco por ele. “Dizia que o Rey Rosa era o escritor dos escritores.” Essa riqueza do autor impregna a ficção de Severina. “Rey Rosa diz que o livro é um delírio amoroso, uma metáfora sobre o poder libertador do perdão. Tudo isso me atingiu muito porque eu estava vivendo um processo muito intenso de separação.”

Severina virou esse mergulho cinematográfico no imaginário de tantos autores/atores latinos. “Tive o privilégio de contar com a cumplicidade de grandes artistas que ajudaram a enriquecer o trabalho. O Daniel Hendler, que nem estava previsto, é uma referência no cinema de Daniel Burman. E o chileno Alfredo Castro transforma esse pequeno papel, do suposto avô, numa coisa mágica.”

Existem ecos de Jorge Luis Borges – O aleph – e Hirsch sabe que tudo isso contamina as fronteiras entre o real e o irreal. “Houve um tempo, na Companhia Sutil, em que eu usava linguagem de cinema no teatro. Mas, no cinema, o que me interessa é quebrar os códigos. Usar a câmera sem truques.” Daí a beleza austera de Severina, que prescinde de efeitos. Felipe Hirsch admira-se que o filme que pretendia rodar em Porto Alegre tenha sido feito em Montevidéu, mesmo que a cidade não seja identificada como tal. “Foram as circunstâncias”, explica. Por elas entendam-se parcerias econômicas que não deram certo e outras – com o produtor Rodrigo Teixeira – que viabilizaram a empresa. A livraria de Drolas era uma antiga farmácia na Ciudad Vieja da capital uruguaia, conta. “Não faço nem ideia, mas meu diretor de arte, o Gonzalo Delgado, conseguiu 30 mil volumes (livros) para colocar lá dentro.” O resultado é admirável, esse comprometimento sincero que faz a força e a beleza de Severina.

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