Premiado em Berlim, longa chileno 'Uma mulher fantástica' estreia no Belas artes e Ponteio

Longa narra o drama de uma cantora trans que perde o namorado, bem mais velho, e é humilhada pela família dele

por Pedro Antunes/Estadão Conteúdo Mariana Peixoto 06/09/2017 20:03
A pista de dança está cheia e Glória apenas observa o movimento. Sozinha, toma seu drinque tranquilamente. Até que uma música lhe chama a atenção. Ela, ainda sozinha, vai para a pista, paquera um conhecido, dança como se não houvesse amanhã.
IMOVISION/DIVULGAÇÃO
A cantora lírica Daniela Vega, que é uma mulher trans, deu consultoria ao diretor Sebastián Lelio durante a preparação do roteiro do filme (foto: IMOVISION/DIVULGAÇÃO)

Marina também está numa casa noturna. Mas, no caso, ela é a atração principal. Comanda um trio de músicos cantando um antigo sucesso da salsa, Periódico de ayer. Quando um homem chega, ela começa a interpretar a canção exclusivamente para ele.

Glória e Marina são mulheres que o cinema não costuma retratar. Igualmente fortes e independentes, são as protagonistas dos dois mais recentes filmes do chileno Sebastián Lelio.

Em Glória (2013), a personagem-título é uma mulher próxima dos 60 anos, separada, com boa situação econômica e filhos já crescidos, que aproveita a vida como pode, na alegria e na tristeza.

Uma mulher fantástica, que estreia hoje nos cines Belas Artes e Ponteio, em BH, traz como protagonista Marina, uma mulher que ainda não chegou aos 30 anos, tem um namorado mais velho e endinheirado e uma carreira ainda não estabelecida como cantora lírica. Paga suas contas trabalhando como garçonete.

Só que Marina é uma mulher trans. E isso acaba por defini-la. Para muitos, Marina é um monstro. E por ela ser como é, não tem o direito de enlutar-se pela perda do homem amado.

Se em Glória Lelio conta a história da personagem num tom de crônica, em Uma mulher fantástica o cineasta mistura gêneros. Há muito de drama e um pouco de thriller na narrativa.

O destaque da produção – que venceu, no Festival de Berlim, o Urso de Prata de roteiro e o prêmio Teddy, dedicado à produção de temática LGBT – é Daniela Vega. Também uma mulher trans, ela é cantora lírica e atriz. Este é seu segundo longa-metragem (o primeiro, A visita, é de 2014).

Durante a criação do roteiro, Lelio trabalhou com Daniela como uma espécie de consultora da personagem, explicando como era ser uma mulher trans no Chile de hoje. Somente quando o roteiro chegou ao seu final houve o convite para que ela atuasse.

IDADE Na história, Marina Vidal e Orlando (Francisco Reyes) vivem um relacionamento feliz. A diferença de idade – 30 anos – não parece importar na relação dos dois. Após a comemoração do aniversário de Marina, eles vão para casa, e Orlando passa mal. Ela o leva ao hospital, mas ele acaba sucumbindo a um aneurisma.

Marina perde o direito de sentir dor porque a família de Orlando a impede de se aproximar. Sofre provocações de toda forma, da ex-mulher e do filho do namorado. E precisa lidar ainda com a polícia em seu encalço, que desconfia da morte repentina de um homem mais velho ao lado da namorada transexual.

A Marina de Daniela passa por todas as humilhações com um misto de orgulho e resignação. A ela só interessa se despedir do namorado morto. As afrontas, que traduzem a falta de aceitação social, vão num crescendo tal como que preparando para o acerto de contas final.

Aos 27 anos, Daniela tem uma carreira recente. Despontou no cenário chileno no clipe da canção María (2014), do cantor e compositor Manuel García. O teatro e o canto lírico vieram na sequência.

Ao EM a atriz disse que a questão trans está avançando em seu país. “A passos lentos, mas há avanços.” A identificação da intérprete com sua personagem é grande. “Que mulher não se identifica com a força interior de cada uma? Como construir um personagem que não possui biografia?”, responde.

Uma mulher fantástica traz várias camadas de leitura. Mesmo que a narrativa levante discussões sobre a questão trans, o filme, no fundo, é sobre uma história de amor e morte.

MAIS SOBRE CINEMA