Artista plástico Décio Noviello emprestou seu talento às escolas de samba e chegou a ser 'negociado' pelas agremiações na cidade

Figura importante na construção da cultura do carnaval em BH, ele não é fã de bloquinhos

Desenhista, cenógrafo, figurinista, gravurista, pintor e nome importante da arte pop brasileira, Décio Noviello, de 88 anos, fez história no carnaval de Belo Horizonte. Mas não o chamem para ver os blocos que prometem arrastar multidões pelas ruas da cidade a partir de amanhã.

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Aos 88 anos, Décio Noviello acha 'uma chatice' a folia que hoje arrasta multidões em BH (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Em 1979, o artista plástico já atendia a convites da prefeitura para decorar a Afonso Pena, onde as escolas desfilavam. Em 1983, houve um concurso para eleger a ornamentação mais bonita. Décio levou o prêmio com o tema Transamazônica – crítica ao “asfalto puro” da avenida, segundo ele, ainda menos arborizada do que atualmente.

Em busca do que chama de sintonia entre as ornamentações do ambiente e dos foliões, ele começou a escrever o capítulo mais luxuoso do carnaval de rua belo-horizontino, que durou de 1983 a 1988. “O povo vinha de toda parte ver a avenida. A decoração estava linda, mas não tinha nada decente para passar por baixo dela. Nossas escolas eram a Canto da Alvorada, com tudo muito pé-rapado, e a Cidade Jardim, com umas meninas de sutiã de tirinha vermelha e calçãozinho, ou então usando camisetas rasgadas, desfiadas com tesoura. O corpo pintado de urucum, todo mundo descalço ou de chinelo de dedo, uma coisa horrorosa. Não dava”, relembra.

 

Confira a programação completa dos blocos de carnaval de BH

 

Não demorou para as escolas convocarem Décio. “Um belo dia, uma pessoa da Cidade Jardim me procurou. Falei: ‘Olha, posso fazer o carnaval de vocês, mas só se todo mundo seguir o que eu mandar e vestir o que eu quiser. Se não for assim, não aceito”, relembra. Condições aceitas.

Arquivo EM
Decoração criada por Décio Noviello para a Avenida Afonso Pena no carnaval de 1983 (foto: Arquivo EM)

Com 600 metros quadrados, a casa de Décio Noviello, no Gutierrez, ainda guarda o brilho de purpurina e ares de barracão. O início de tudo foi lá, no ateliê recheado de moldes de resina e aquarelas – intactos, mesmo depois de guardados por 40 anos.

A estreia do Décio carnavalesco se deu no improviso. “Fiz umas roupas silkadas bem aqui, onde está esta mesa. Silk é só imprimir, facilitou muito. Botei nas fantasias umas golas e uns punhos laminados. Sabe o que era aquele papel brilhante que usei? Vinha do verso do saco de fermento – fermento para ração de gado, já viu? Do lado de dentro, a embalagem era toda prateada”, conta ele. “Sabe o que foi mais bonito? Na hora do desfile, aconteceu de dar uma chuvinha. As gotas por cima daquele material metalizado davam a impressão de que ele era todo bordado de lantejoula. Foi um sucesso danado. A Cidade Jardim ganhou o concurso daquele ano”, recorda.

SÃO PAULO Noviello relembra os tempos em que cortejos das escolas de samba eram o ponto alto do carnaval de BH. Diferentemente de hoje, ninguém queria saber de bloquinho. A cidade superava São Paulo em esplendor na avenida. “Paulistas? Eles não tinham nada. Nosso carnaval aqui era muito melhor. Lá só ficou bom depois que fizeram o sambódromo”, diz. “A prefeitura começou a botar dinheiro, ficou uma beleza. Vinham mestre-sala e porta-bandeira do Rio. Pra nós, dos bastidores, as coisas deram uma melhorada boa. O comércio passou a oferecer materiais adequados para adereços e fantasias, coisa que não tínhamos no início”, conta.

Quando Noviello estreou como carnavalesco, faltava matéria-prima. “Não tinha nem cetim em Belo Horizonte. Quer dizer, até tinha, mas era assim: a gente precisava de 100 metros, eles tinham só 10 para vender. Depois melhorou demais”, relembra.

 

 

 

Com bom humor, o carnavalesco relata que as escolas chegavam a “negociá-lo”. “Elas me vendiam mesmo, como hoje acontece com jogador de futebol. Só que eu mesmo não levava nada!”, conta ele, aos risos. “Naquela época, éramos só dois artistas envolvidos com o carnaval de BH: eu e o Raul Belém, do Palácio das Artes”, informa, referindo-se ao cenógrafo, figurinista e arquiteto que morreu em 2012, aos 70 anos. “Teve um ano em que fui ‘vendido’ para a Canto da Alvorada. Mas eu era muito amigo do pessoal da Cidade Jardim e não queria deixá-los na mão. Então, chamei o Raul para cuidar da escola. Você acredita que naquele ano a escola dele ganhou da minha?”

“RIDÍCULO” Noviello é um carnavalesco que não gosta de brincar carnaval. “Eu, sambar? Me sinto ridículo”, explica. Em 2010, ele virou enredo da Escola de Samba Império da Nova Era. Amante das manifestações populares, ele conta, entristecido, como os desfiles foram extintos em 1988. “O prefeito Sérgio Ferrara acabou com os desfiles. Ele e um outro invejoso, pra falar a verdade. Quis acabar com o carnaval porque queria fazer o dele. Não se conformou com o fato de eu estar comandando tudo. Em 1988, aliás, o carnaval estava prontinho. Produzi a Cidade Jardim, estava tudo pronto. Aí chegou a prefeitura e comunicou a suspensão da festa. Não saímos, porque precisávamos da verba que não saiu. As escolas ficaram feito doidas, todo mundo devendo a loja de tecido, aviamento e não sei o que mais. Isso até a prefeitura conseguir pegar as notas fiscais dos produtos e pagar as lojas”, relembra.

Com a promessa de arrastar 3,6 milhões de foliões pelas ruas este ano, o carnaval de BH não interessa mais a Noviello. “Esse negócio de bloquinho é uma chatice, né? Não tem graça nenhuma. Deus me livre. Podem ir lá, mas não me chamem nem pra ver na televisão”, brinca.

Paulistas? Eles não tinham nada. Nosso carnaval aqui era muito melhor. Lá só ficou bom depois que fizeram o sambódromo”

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