Designers e público aproveitam o carnaval adotando visual irreverente e, ao mesmo tempo, de resistência

Figurinos carregam a bandeira do respeito à diversidade, à liberdade sexual e ao feminismo

por Laura Valente 05/02/2018 08:00

Biquínis e sungas desfilando em plena urbe, peitos e bundas à mostra, camisetas e adereços com frases como bicha pwr (power), tesão, vadia. Sim, na ocupação carnavalesca das ruas de BH, iniciada por volta de 2010 e que promete atrair 3,6 milhões de foliões para a cidade nos próximos dias, figurinos um tanto provocativos e que evocam mensagens de resistência têm feito cada vez mais sucesso não só entre os que propõem mudanças sociais, mas também entre o público comum.

Edésio Costa/E.M/D.A Press
A designer Raíssa Leão e os amigos Rainier Pironi e Brenda Oliveira: a moda como agente de transformações no comportamento (foto: Edésio Costa/E.M/D.A Press )

Traça um recorte desse movimento a designer Raíssa Leão, autora da pesquisa “Roupa que fala”, idealizadora de vários projetos que abordam moda e criatividade como ferramenta de expressão e vendedora no coletivo de designers Mooca, na Savassi, onde comercializa peças com as frases “Respeite as mina”, “Respeite as trans”, entre outras. “O carnaval de BH, que começou como um movimento político de resistência a partir da ocupação de espaços públicos, ganhou força, vem crescendo e fazendo muita gente se empoderar não só das ruas, mas da roupa, do cabelo, do sexo, de como vai agir, de tudo. Como reflexo, tem levado o público a aprender a conviver e a respeitar as individualidades, o espaço do outro que adota tal estilo de vida ou de se vestir.”

 

Confira programação completa dos blocos de carnaval de BH

 

 

A designer acredita que esse movimento reforça a lógica de que “não é por usar um shortinho que posso ser abusada na rua, ou que quem está beijando uma pessoa do mesmo sexo deve ser agredido”. Raíssa afirma ainda que há muito essa atitude de empoderamento por meio do vestuário e de outras formas de expressão deixou de estar restrita a uma bolha artística ou das ditas minorias para tomar uma proporção geral. “Como um espaço político e de aceitação das diferenças, o carnaval fala para mais e mais pessoas sobre essa horizontalidade, que inclui o indivíduo poder ser quem é e ser respeitado por isso. E por que não viver mais essa atitude, né? De forma consciente, todos os dias.”



CORPOS Não por acaso, designers de vanguarda apostam no movimento de resistência, que ganha fôlego na folia de Momo, aproveitando para abordar outros assuntos em alta, entre eles o feminismo, também com alvo nas recentes denúncias sobre assédio sexual nas comunidades artística e esportiva em diversos países. Uma delas é a grife Negoçada, projeto criado em 2016 pelas estilistas Maíra Nascimento, mineira radicada no Rio de Janeiro, Layana Thomaz e a produtora e figurinista Kenia Faria. Maíra e Layana passaram por tratamentos de saúde, o que mudou o olhar delas sobre seus próprios corpos. “Ambas nos vimos a fim de transformar isso em uma coleção que empoderasse outras mulheres e suas histórias. Então, a Negoçada nasceu desse desejo. Com a grife, propomos a aceitação e a liberdade do corpo e criamos patches com dizeres feministas para enfeitar esse corpo de forma política e com senso de humor”, diz Maíra.

Entre as peças há maiôs, hot pants e tops com mensagens bordadas, “irreverentes e fortes, como deve ser o carnaval”, aponta. A estilista de 39 anos lembra ainda que expor o corpo como ele é, com gordurinhas, celulites, cicatrizes e assumindo características e imperfeições, faz parte da atitude libertadora proposta pela grife.
Elisa Mendes/Divulgação
A grife Negoçada, da estilista Maíra Nascimento, e sua coleção feminista para a folia (foto: Elisa Mendes/Divulgação)

E mais. Sobre o primeiro carnaval após denúncias generalizadas de assédio sexual, a estilista é taxativa. “Estamos muito felizes que esses esqueletos estejam saindo do armário, com toda essa onda que o feminismo está puxando de denúncias e empoderamento: o assédio tem que acabar, e o carnaval é espaço político livre e de protesto por natureza. Maíra reforça: “Então, não existe essa de a roupa que você usa justificar a violência. Desde o início começamos a propor uma roupa mais pelada mesmo, com lycra, estilo swimwear, para molhar. Porque o carnaval é no verão, o bloco é quente, faz calor, você anda pra cá e pra lá debaixo de sol e a exposição do corpo não pode ser desculpa para ninguém assediar, olhar diferente ou desrespeitar alguém que está curtindo. Porque a parada é direitos iguais, mesmo. Não é para pensar ou agir diferente porque é mulher ou homem. Acima de tudo, a gente prega aceitação e respeito”.

AGÊNERO Também criou coleção especial para a temporada Célio Dias, estilista da LED, grife que aposta em criações não segmentadas em rótulos ou padrões, inclusive os de gênero. Entre os modelos, maiôs, sungas, tops e camisetas com cores chamativas e logos característicos da marca, como “bicha pwr” e “plena”. “Vivemos uma nova era. O carnaval, além da folia, se tornou um ato político. Ocupações urbanas ocorrem o tempo inteiro e os blocos de rua tomaram grandes proporções, algo muito importante, pois é a rua falando. Quando criamos nossa coleção, partimos da ideia de que precisamos aceitar nosso corpo e utilizá-lo também como forma de revolução. Os discursos precisam sair das redes sociais para as ruas e os corpos são uma forma incrível de externar empoderamento e força para os diversos movimentos. Nossos corpos são espaços estéticos em que podemos expressar resistência e o carnaval é uma forma linda de colocar isso pra fora”, registra o criador, que comercializa as peças nas lojas Mooca, Butic Bardot e Grande Hotel Ronaldo Fraga.

Acompanhando a demanda por peças e acessórios de carnaval na multimarcas em que atende público variado e de faixa etária que vai dos 15 aos mais de 80 anos, a ativista, pesquisadora e vendedora Raíssa Leão observa um fenômeno que considera instigante. “Muitas meninas mais jovens têm trazido as mães, que as apoiam na escolha de fantasias, mesmo por uma peça mais pelada. É claro que faz parte de uma estratégia para trazer a filha para mais perto de si, saber onde e com quem está. Mas também indica que gerações mais velhas estão apoiando o empoderamento das jovens, que querem usar maiô, short, biquíni ou mesmo ficar nuas (e nesse caso espero que atentas à responsabilidade que isso traz, maduras para lidar com tudo isso). E essa é uma galera que talvez não participasse tanto desse carnaval de resistência do início, o que indica ainda a interlocução entre públicos, idades e estilos, o que é muito legal. Penso que temos que estar atentos a isso aí.”

TRANSFORMAÇÃO
Ao destacar modelos de acessórios que fazem referência a estereótipos de comportamento antes marginalizados com dizeres como vadia, ela aposta no carnaval como propulsor de mudanças. “Acredito muito na desconstrução para a revolução. Estamos quebrando regras para descobrir novas, o que é muito importante para a sociedade. Por que não podemos ser vadias? Se somos, vamos assumir a vadiagem, escancará-la e, nesse sentido, a moda. O modo como me visto (ou me desnudo) tem o poder de passar mensagens de resistência, de revolução, de evolução. Seja em um brinco, em uma roupa que você faz, compra, customiza, reaproveita.”

A pesquisadora reconhece o estranhamento que a mudança provoca, mas só vê benefícios na tomada de poder sobre o corpo e o lifestyle de cada um. “É importante refletir sobre isso, saber para onde vamos caminhar. Alguns tacham como excesso, e pode até ser porque mudanças trazem confusões no início, mas creio que estamos em um momento de transformação, no abre-alas de uma nova era de jovens que terão mais consciência de tudo, numa visão mais holística de como conviver e de como tratar o outro. Nesse sentido, o carnaval de BH reflete esse comportamento. Não sem leis, sem regras, mas divertido, alegre, sexy, utópico. E sem abuso, porque você não precisa ultrapassar o limite do outro para aproveitar, se divertir. Acredito que estamos no auge da experimentação de uma mudança de paradigmas e que, daqui a um tempo, vamos descobrir que fizemos parte dessa era de transformação.”

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