Blocos engajados de BH 'rebolam' para manter sua essência

Relacionamento com poder público e patrocinadores é um dos maiores desafios nessa empreitada

24/02/2017 12:09
Embora o carnaval tenha ganho notoriedade na recém-fundada capital mineira no fim do século 19 e na primeira metade do século 20, através das grandes sociedades – clubes que reuniam empresários e profissionais liberais da alta sociedade, como o Diabos da Luneta (1899) e o Matakins (1904) –, o caráter democrático, plural e descentralizado da festa foi a fagulha que ajudou a manter viva e a reacender a chama da folia em Belo Horizonte, que chega a 2017 com expectativa recorde de 2,4 milhões de foliões nas ruas.

A resistência das escolas de samba, que surgiram a partir de 1937 em vários bairros da capital, e dos blocos caricatos, marginalizados, sobretudo, nas últimas três décadas, foram embriões para o nascimento de blocos de rua no fim da década passada. Eles surgiram como resposta política e com a proposta de ocupação consciente do espaço público, levando o carnaval para regiões periféricas e marginalizadas.

“Nós, dos blocos de rua desta geração, temos uma dívida histórica com as escolas de samba e blocos caricatos. Se, de alguma forma, esse processo (de retomada do carnaval) teve espaço de se constituir em 2009, 2010 e 2011, foi porque forças comunitárias resistiram a essa política de degradação e destruição fortemente impetrado pelo poder público. Em suas vilas e comunidades, eles resistiram”, afirma o antropólogo e ativista Rafael Barros.

A marginalização da festa está arraigada na história do carnaval em Belo Horizonte, festejado desde antes da inauguração da capital, com os relatos dos populares entrudos no Curral del-Rei, ainda no século 19. “É inevitável falarmos do signo que marcou a fundação da capital: o signo da exclusão territorial e social. Aarão Reis, responsável pela construção da nova capital, tinha uma concepção urbanística conservadora, por assim dizer, pondo em prática critérios inspirados nos ‘higienistas sociais’. Essa concepção refletiu na manifestação cultural do carnaval”, afirma o historiador e pesquisador do tema Marcos Maia, curador da exposição Narrativas do samba e do carnaval de Belo Horizonte, no Museu Abílio Barreto (2013).

“As manifestações populares, como o entrudo, foram reprimidas, dando espaço às grandes sociedades já no segundo ano de construção da nova capital. Note-se que, depois do primeiro carnaval, em 1898, os comerciantes e demais membros da elite se reuniram para fundar uma grande sociedade que saiu no ano seguinte: o Diabos da Luneta. Possivelmente, essa iniciativa estava ligada ao plano de civilização do carnaval nos moldes europeus, seguindo um movimento nacional”, comenta Marcos, que, nos últimos anos, se debruçou sobre o acervo de Abílio Barreto e lançará em breve os escritos sobre o carnaval deixados pelo historiador, que retratam os festejos na cidade de seus primórdios até a década de 1940.

Para Rafael Barros, o perfil combativo dos novos blocos, associado ao processo e contexto político na qual ele surge, deu ao carnaval belo-horizontino uma característica singular, uma vez que outras bandeiras, postas na cidade, foram abraçadas pelos foliões. Dessa forma, a pauta, que se iniciou como uma política territorial, foi abrangendo outras questões: a luta racial, o feminismo e o espaço da mulher e as causas de gênero.

“O fato de eu ser uma mulher, negra e transexual, e estar à frente de alguma coisa é um avanço. A minha comunidade não está à frente de nada, está sempre à margem”, comenta Cristal Lopez, madrinha de cinco blocos e que se tornou um dos símbolos da luta pela visibilidade trans em Belo Horizonte. “A gente tinha medo de se envolver no carnaval, de retaliação e agressão. (O fato de) eu estar ali, na frente, é um avanço imenso. Ajuda outras pessoas da minha comunidade, motiva outras pessoas a fazer o mesmo”, comenta.

As mulheres, aliás, fizeram do carnaval um meio para dar visibilidade e projeção às suas diversas causas. Este ano, por exemplo, mulheres dos mais variados blocos lançaram a campanha “Tira a mão: é hora de dar um basta” para combater o assédio sexual. “O objetivo é alertar contra a agressão, o tipo de abordagem. As mulheres não estão só assistindo à festa. Tem mulher tocando todo tipo de instrumento, regendo, cantando, dançando. As mulheres estão fazendo o carnaval”, afirma Débora Mendes, uma das criadoras do bloco de axé Havayanas Usadas, que estreia este ano como dissidência do Baianas Ozadas.

Ao longo da história, grupos de mulheres se reuniram a formaram agremiações, caso do bloco Camponesas Búlgaras. No entanto, o historiador Marcos Maia afirma que não tinham como objetivo nenhum questionamento político aparente. Em 1946, foi criada a Escola de Samba Unidos de Monte Castelo por uma mulher sambista e negra chamada Lourdes Maria, que atuou no mundo do samba até a década de 1990. Hoje, diversos blocos se apresentam com bateria composta apenas por mulheres: Bruta Flor, Clandestinas, Sagrada Profana e Baque de Mina.

“TOCA QUEM FOR”  Para o músico Di Souza, regente do bloco Então, Brilha!, esse caráter plural da festa se tornou elemento marcante da música de carnaval de Belo Horizonte, que passou a ser produzida pelos novos blocos. “A característica principal é ser abrangente. Em Salvador, por exemplo, ensaia-se o ano inteiro, tem toda uma concepção que os blocos daqui não têm. A proposta que se formatou em Belo Horizonte é do ‘toca quem quer’. O nível de conhecimento não é critério para nenhum bloco”, afirma Di Souza, que comanda o cortejo de um dos mais tradicionais blocos da cidade, com desfile previsto para amanhã de manhã. Apesar da informalidade e da abertura da grande maioria dos blocos, é notório o esforço de profissionalização musical, com frequentes oficinas, mais ensaios, composições próprias e que chegaram a gravar CDs e serem convidados para shows.

Em menos de uma década, o carnaval se multiplicou – de tamanho e causas. Com o crescimento, vêm à tona novas discussões e, naturalmente, novos desafios. Manter a originalidade e o caráter público, resistir à mercantilização e à espetacularização da festa são questões que serão testadas nestes dias de folia e devem ser observadas e debatidas. “Carnaval não é evento, é cultura e precisa de política cultural para que a gente possa potencializar e retomar essa experiência comunitária, que é o germe da festa”, conclui Barros.

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