Brasil, o país sem memória, como diz o senso comum, não cultua seus heróis. É essa a defesa de José Roberto de Castro Neves para a concepção do livro Brasileiros (Nova Fronteira). “Não existe o hábito de falar dos grandes brasileiros, o que é uma pena, pois o reconhecimento de um patrício estabelece uma relação de pertencimento, de identidade.”
Para recuperar a trajetória de homens e mulheres que tiveram importantes papéis na política, sociedade, cultura e esporte do país, Castro Neves convidou outros tantos homens e mulheres com relação pessoal ou de afinidade com tais personagens. São 41 textos, em formato de memória ou de ensaio.
Castro Neves deu total liberdade para que os autores escolhessem seus heróis. “As pessoas foram escolhendo muito em função de sua área de atuação. A ideia não era fazer a coisa elogiosa, mas encontrar a humanidade daquelas pessoas, com seus pecados também. Queria 'salvar' estas pessoas para as novas gerações, pois senão a história fica interrompida”, acrescenta ele.
O organizador diz ter se surpreendido com várias das histórias. “O Rondon, por exemplo, é claro que eu tinha a ideia de quem tinha sido, mas nunca havia parado para analisá-lo. O Bial apresenta uma história de vida sensacional, de exemplo de correção e respeito ao próximo e amor à coisa pública. Daria vários filmes.”
CRÍTICA
Advogado, professor da PUC-Rio e da Fundação Getulio Vargas e autor de vários livros, entre eles Medida por medida: O direito em Shakespeare, Castro Neves também colaborou para a obra coletiva. É o autor de ensaio sobre o jurista Sobral Pinto. “Hoje ele é muito criticado porque era machista, mas era um homem do seu tempo. Um apaixonado pela liberdade, abnegado de bens materiais e entendia que o direito de defesa das pessoas era absoluto, a ponto de defender aqueles com quem tinha opinião contrária.”
Algumas das memórias afetivas que o livro apresenta são reveladoras sobre os personagens. Paulo Ricardo comenta sobre o impacto que a presença de Cazuza lhe causou na primeira vez em que se viram; Cacá Diegues relembra da força da obra de Glauber Rocha, e a reação diversa que sua obra-prima, Deus e o diabo na terra do sol, provocou na première do filme, no Festival de Cannes.
A jornalista Sônia Nolasco, viúva de Paulo Francis, escreveu pela primeira vez sobre ele desde a sua morte, em 1997. No texto, ela trata de desmitificar o personagem “arrogante, cáustico” que Francis, que chegaria aos 90 neste ano, teria criado.
Através de situações cotidianas - a relação com os gatos, a paixão por comediantes populares, como Dercy Gonçalves e Oscarito, e filmes épicos bíblicos - ela traça um retrato emocionante e amoroso. Mas tampouco deixa apagar as lembranças ruins de um casamento de 23 anos. “Não foi fácil”, Sônia admite, acrescentando com uma citação do marido: “Na nossa certidão de casamento não consta a garantia de facilidade conjugal.”
Trechos
Paulo Francis, por Sônia Nolasco
“Aos 50 anos, Francis já estava todo grisalho. Agora ele ia ao barbeiro porque trabalhava em televisão, onde exigiam o tal ‘padrão Globo de qualidade’. Quando ele começou a fazer comentários políticos todo dia e a participar do programa Manhattan Connection, cometi a asneira de sugerir que ele escurecesse um pouco os cabelos para rejuvenescer. Feito Adão, ele caiu na conversa. Só que não procurou cabeleireiro. Contratou o Carlinhos, brasileiro, maquiador na televisão e ex-cabeleireiro.
Carlinhos nunca acertou o tom de louro escuro que era o natural do Francis. Primeiro produziu um marrom dégradé, depois marrom rosado, e finalmente o extravagante cor de burro quando foge, do qual Lucas Mendes riu tanto que nem conseguiu começar o programa. Parece que os espectadores não notaram, pois ninguém escreveu perguntando sobre aquele arco-íris de cores obviamente falsas.
E alguma vez Francis reclamou e pediu ao Carlinhos para refazer o trabalho? Não. Mal olhava no espelho cada tonalidade absurda que o rapaz inventava e no dia seguinte ia para a rua, crente que estava abafando. Por que Carlinhos? Porque ele vinha em casa na conveniência do Francis, fazia tudo na sala e lavava na pia do banheiro.”
Glauber Rocha, por Cacá Diegues
“Aos poucos, durante a projeção, grande parte dos espectadores (do Festival de Cannes, em maio de 1964) ia se levantando de suas cadeiras para ir embora às pressas, com o espírito confuso e quase sempre irritado. Quando Deus e o diabo na terra do sol terminou e a luz da sala se acendeu, uma boa metade dos espectadores a havia deixado, antes do fim do filme. Os que ficaram, até a corrida final de Geraldo Del Rey do sertão para o mar, permaneciam em silêncio, sem saber direito o que pensar, quanto mais o que dizer. Mais ou menos como se, naquela tela terráquea, tivessem acabado de assistir a uma primeira exibição de cultura marciana.
Não sei dizer quantos segundos se passaram entre o fim da projeção e o que aconteceu em seguida. O fato é que, pouco a pouco, os que haviam ficado na sala começaram, um a um, a aplaudir. Até que estavam todos de pé, aos gritos, saudando o que tinham acabado de ver. Muito provavelmente na certeza de que tinham que aprender a ver o que tinham acabado de ver. O que os havia entusiasmado tanto.”
Brasileiros
Organização de José Roberto de Castro Neves
Nova Fronteira (448 págs.)
R$ 69,90