Obesidade infantil pode surgir do mau exemplo dos pais para os filhos

Estudo feito em seis países mostra que os hábitos e a genética da família podem influenciar em até 60% do índice de massa corporal de uma criança. Segundo especialistas, as atitudes do dia a dia são as principais responsáveis pelo ganho de peso

por Paloma Oliveto 13/03/2017 14:35
Ilustração EM
(foto: Ilustração EM)

Em um mundo cada vez mais pesado, as crianças estão herdando dos pais um triste legado: a obesidade. Estudos recentes evidenciam o papel crucial da família nesse fenômeno crescente, estimado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 42 milhões de casos — e isso considerando apenas a faixa etária até os 5 anos. Uma nova pesquisa da Universidade de Sussex, na Inglaterra, mostrou que, no geral, 20% da composição do índice de massa corporal (IMC) de meninas e meninos vem do pai e da mãe. Entre os pequenos que estão muito acima do peso, contudo, essa proporção aumenta para 55% a 60%. Isso significa que mais da metade do risco de ser obeso é determinado pela combinação de genética e ambiente familiar.

O estudo foi realizado com 100 mil crianças e seus pais no Reino Unido, nos Estados Unidos, na China, na Indonésia, na Espanha e no México. “Nossas evidências vieram de dados coletados por diversos locais do mundo, com diferentes padrões de nutrição e obesidade — de uma das populações mais obesas do mundo, os Estados Unidos, aos dois países mais magros, a China e a Indonésia”, diz Peter Dolton, professor da Universidade de Sussex e principal autor do trabalho. “Descobrimos que o processo de transmissão intergeracional (da obesidade) é o mesmo em todos esses diferentes países”, observa.

Embora quando se fale em herança e transmissão de características seja irresistível associá-las à genética, o problema é muito menos dos genes e bem mais dos hábitos ruins. “A obesidade é multifatorial. Mães obesas tendem a gerar filhos que serão obesos, e há doenças genéticas que podem alterar o apetite”, reconhece a endocrinologista pediatra Fabiana de Luccas, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria. “Mas isso é exceção. Os hábitos têm um peso muito grande. A sociedade moderna trouxe muitas vantagens, mas também trouxe comida de caixinha, falta de tempo para cozinhar em casa, sedentarismo...”, enumera.

A culpa não é só do hambúrguer com batata frita ingerido eventualmente, depois do cinema. O problema, de acordo com um estudo da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, está nos hábitos familiares, repetidos no dia a dia. Para investigar a influência dos lanches rápidos e altamente calóricos na incidência da obesidade infantil, cientistas da instituição examinaram dados da Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (Nhanes), realizada nos Estados Unidos entre 2007 e 2010. Os dados revelavam a ingestão dietética diária e a origem do alimento e da bebida consumidos (fast food, restaurante, casa etc).

No total, houve informações de 4.466 crianças e adolescentes de 2 a 18 anos, categorizados como não consumidores de fast food, consumidores pouco frequentes (menos de 30% das calorias vinham desse tipo de lanche) ou consumidores excessivos (mais de 30% das calorias provenientes). Em seguida, os pesquisadores determinaram quais fatores estavam mais associados ao risco de obesidade. As análises estatísticas mostraram que o consumo exagerado de lanches gordurosos é apenas parte de um padrão alimentar muito maior, adquirido pelas crianças obesas ainda muito pequenas, na família. Essa receita inclui poucas frutas e vegetais, muito alimento processado e abundância de bebidas açucaradas.

“É isso que está levando à obesidade infantil. Comer fast food é apenas um comportamento a mais que resulta desses maus hábitos. Só porque as crianças que comem mais fast food são as mais propensas a se tornar obesas, isso não prova que as calorias desses lanches sejam as culpadas”, disse, em nota, Barry Popkin, professor de nutrição da universidade e principal autor do estudo. “O trabalho apresenta fortes evidências de que a dieta infantil está mais fortemente associada à má nutrição e à obesidade. Enquanto que reduzir esse tipo de alimento (fast food) é importante, o resto da dieta da criança não deve ser subestimado”, completou Jennifer Poti, coautora do artigo.

Mudança coletiva

Autora do livro Por que não posso comer besteiras todos os dias?, voltado a alunos do ensino fundamental, a nutricionista Joana Lucyk chama a atenção para o envolvimento de toda a família na mudança de hábitos. “Crianças seguem exemplos, e os pais devem mudar de atitude com elas, para que a reeducação seja eficaz. Ter um comportamento alimentar e cobrar outro diferente é incoerente e ineficaz”, observa. A especialista, que não participou do estudo, também ressalta a importância de políticas públicas nesse sentido. (Leia Três perguntas para.) “Deve-se sempre trabalhar o conhecimento, tanto em campanhas governamentais quanto em casa e no privilegiado ambiente escolar.” Mãe de um menino de 10 anos que é obeso, Eloá Batista, de 39, reconhece a influência do ambiente familiar no ganho de peso do filho. “Eu sou obesa mórbida. A última vez que pesei, estava com mais de 120kg, e a vida diária é uma luta para mim. Meu filho sempre me ajudou bastante, porque meu peso faz tudo ser mais difícil, mas, infelizmente, ele também adotou meus maus hábitos alimentares”, reconhece. O menino, segundo ela, tem 88kg, dor nas costas e no joelho frequentemente, além de dificuldades para respirar. “Na idade dele, eu não pesava nem 50kg. Dói muito ver meu filho tão obeso e não conseguir controlar nem o que eu como”, diz a servidora pública.

Dependência e poucas regras

O tratamento da obesidade infantil não pode se limitar à criança nem a um profissional. “A família é muito importante, não só porque é nesse ambiente que a criança aprende a se alimentar, mas é onde ela desenvolve todos os seus hábitos. A obesidade surge no contexto familiar e, por isso, a família toda precisa ser tratada”, defende a psicóloga Maria Alexina Ribeiro, professora da Universidade Católica de Brasília (UCB), onde coordena a pesquisa “Atendimento a crianças e adolescentes com transtornos alimentares e obesidade e suas famílias: consolidação de uma metodologia psicossocial”.

Nesse projeto, que envolve alunos de mestrado e doutorado da instituição, os profissionais usam diversas estratégias terapêuticas para tentar provocar mudanças nos hábitos e na dinâmica familiar. O psicólogo Vladimir Melo, que assina com Maria Alexina Ribeiro o livro Obesidade infantil: interações familiares e ciclo de vida numa perspectiva sistêmica, explica que esse transtorno alimentar não está associado apenas ao excesso de ingestão calórica. “Nós observamos que essas famílias têm um padrão, com dois aspectos. Um é a falta de regras, os limites são fracos. O outro é o grau de coesão familiar, que é muito grande. Às vezes, isso prejudica a autonomia e a individualidade. Quando a família é muito coesa, é muito difícil para a criança ser diferente do grupo. Geralmente, são crianças mais dependentes e inseguras”, observa Melo, que pesquisou esse tema para o mestrado. Agora, no doutorado, ele investiga o papel dos avós no processo.

O psicólogo explica que, muitas vezes, a própria família cria situações — consciente e inconscientemente — para boicotar a dieta das crianças. De acordo com ele, há um mecanismo de negação muito forte, a ponto de prejudicar a saúde dos pequenos. “A família resiste o quanto pode a tomar conhecimento da obesidade da criança”, diz. Melo afirma que apenas quando um exame comprova que os filhos estão com a saúde comprometida é que os pais costumam tomar alguma providência. “Por isso o ideal é, primeiro, conhecer as dificuldades dessa família, ver como ela trabalha as regras e limites, o excesso de coesão... É um processo lento e difícil”, reconhece.

A professora da UCB lembra que os hábitos a serem mudados, muitas vezes, fazem parte da própria cultura. “Ainda há uma valorização da criança gordinha, que é vista como saudável”, lamenta. Ela conta que, no projeto da universidade, uma mulher admitiu que dava Coca-Cola na mamadeira para uma criança de 1 ano e 3 meses. “Nessa família, tinha outra criança de 12 anos que pesava 80kg”, relata. “O que as pessoas precisam ficar atentas é que ter saúde e alimentação saudável é um direito da criança. Inclusive, trabalhamos no projeto com o Estatuto da Criança e do Adolescente”, revela Maria Alexina Ribeiro.”

Bárbara Cabral/Esp. CB/D.A Press
(foto: Bárbara Cabral/Esp. CB/D.A Press)
TRÊS PERGUNTAS PARA...
JOANA LUCYK, nutricionista

1) A influência dos hábitos familiares é maior do que o da genética na obesidade infantil? De uma forma simples, a genética carrega a arma, e o estilo de vida aperta o gatilho; ou seja, os hábitos alimentares são determinantes para o desencadeamento da obesidade infantil. A alimentação quando inflamatória, isto é, carregada em açúcares, farinhas refinadas, gordura trans e aditivos químicos, favorece o desequilíbrio orgânico, e uma das principais consequências é a obesidade. Os hábitos de vida são determinantes para a expressão das características genéticas.

2) Hoje, o acesso à informação é grande, as pessoas aparentemente sabem o que leva à obesidade. Por que os maus hábitos ainda persistem?
Pela praticidade, muitos indivíduos recorrem a produtos industrializados que são carregados em farinhas refinadas, açúcares, gordura trans e aditivos químicos e, muitas vezes, não se dão conta disso. Há uma informação simples que vem em todo produto industrializado e que pode ajudar na tomada de decisão na hora da compra: a lista de ingredientes de todos os produtos vem em ordem decrescente, ou seja, o primeiro é o que está em maior quantidade no produto. Diante dessa informação e sabendo quais as substâncias que causam mais desequilíbrio no organismo, poderíamos decidir por melhores opções na hora de comprar. Tem muito pão integral em que a farinha refinada é o primeiro ingrediente, e o açúcar o segundo. Inúmeros biscoitos integrais e derivados de leite, como iogurtes e leites fermentados, têm o açúcar na dianteira da lista. Muita granola e cereais matinais são altamente inflamatórios. Muitas vezes, as pessoas não se dão conta da quantidade de substâncias inflamatórias que ingerem em produtos ditos saudáveis. E se os indivíduos optassem por consumir com mais frequência alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias em vez de produtos industrializados, certamente a prevalência de obesidade infantil diminuiria.

3) Você acredita que campanhas governamentais podem ajudar nesse processo de educação das famílias? Sim, as campanhas governamentais são parte do processo. Em todas as esferas, a educação nutricional deve ser trabalhada para que os resultados sejam duradouros. Deve-se sempre trabalhar o conhecimento, tanto em campanhas governamentais quanto em casa e no privilegiado ambiente escolar. A criança tem de vivenciar esse conhecimento para que o processo de educação nutricional seja eficaz.