Brasil tem dificuldades para adotar a medicina de precisão

Tipo de tratamento é focado na aplicação, na hora exata, da melhor terapia em um paciente. A carência de especialistas é um dos obstáculos

por Isabela de Oliveira 19/08/2016 14:00
Tratar indivíduos, e não apenas a doença. Esse é o conceito da medicina de precisão, um instrumento que identifica o tratamento certo, na hora certa, para o paciente certo. Por minimizar a prescrição de drogas caras - e, às vezes, ineficientes - e seus inconvenientes colaterais, a estratégia promete otimizar os cuidados com a saúde. No entanto, o caminho para a implementação do modelo no Brasil é longo: obstáculos regulatórios, escassez de recursos humanos e técnicos e as complexidades de um sistema de saúde que se divide em público e privado separam a população do tratamento de excelência, diagnosticam pesquisadores brasileiros na revista The Lancet Oncology.

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Liderado pelo oncologista gaúcho Stephen Stefani, o painel de especialistas se reuniu em Miami, nos Estados Unidos, em novembro passado, para listar os desafios da implementação da medicina de precisão no Brasil e propor soluções (veja arte). A reunião foi um convite da Fundação Saúde das Américas (FSA). Segundo os médicos, a crescente compreensão da patologia molecular de tumores combinada com uma onda de novas drogas e tecnologias de diagnóstico traduziu-se em melhorias substanciais na sobrevida para os pacientes com cânceres. Apesar disso, de 30% a 40% deles são medicados com drogas cujos benefícios são superados por altos custos de tratamento e efeitos colaterais evitáveis.

De 30% a 40%
dos pacientes oncológicos  recebem medicamentos cujos benefícios são superados pelo alto custo do tratamento e pelos efeitos colaterais evitáveis

Na oncologia, a medicina de precisão busca combinar o histórico médico do paciente, o estado clínico dele e as características moleculares da doença. A descoberta de biomarcadores prognósticos, como agentes moleculares de cânceres comuns; e a identificação de subtipos moleculares em tumores sólidos permitiram o desenvolvimento de drogas e melhores decisões sobre a intervenção mais apropriada. Por exemplo, no tratamento do câncer colorretal, pessoas medicadas com a droga cetuximab e quimioterapia têm melhor resposta global que as tratadas apenas com a quimioterapia. No entanto, um subgrupo é exceção: os pacientes com uma mutação no gene KRAS não apresentam  resposta ao cetuximab. A recomendação, agora, é que esses não sejam tratados com o medicamento.

Sem protocolo
O acesso dos brasileiros à medicina de precisão é frustrado porque poucos laboratórios têm recursos técnicos e humanos para fazer testes que constatem mutações genéticas e ajudem os médicos a direcionar o tratamento de forma precisa. Segundo o painel de brasileiros, outro problema é que a interpretação de testes genéticos de diagnóstico depende do trabalho conjunto de uma equipe variada de especialidades médicas.

Porém, devido ao baixo suporte financeiro e à falta de recursos humanos, sobretudo no Sistema Único de Saúde (SUS), essa exigência não pode ser cumprida. Patologista do Departamento de Anatomia Patológica do A.C.Camargo Câncer Center, em São Paulo, Maria Dirlei Begnami explica que os exames de alta precisão estão presentes no Brasil (veja arte). Contudo, pouquíssimas pessoas têm acesso a eles. “Um grande problema é que não temos um protocolo ou um sistema de controle que padronize esses testes. Isso é importante para assegurar a qualidade da avaliação e é um passo essencial para a implementação ampla da medicina de precisão”, diz a coautora do estudo.

Pode até parecer que o país está muito atrás no que diz respeito à adoção da medicina de precisão, mas, na América Latina, é um dos que contam com condição mais favorável. “Se aqui a situação é ruim, em outros países vizinhos, é bem pior, pois eles têm menos recursos tecnológicos e centros de referência. O México e a Argentina, por exemplo, até chegam perto do Brasil, que poderia ser uma referência se tivesse uma legislação que nos permitisse trabalhar. Muitas vezes, é difícil fazer o teste e liberar o exame porque eles não são regularizados em termos jurídicos”, diz Begnami.

O país também não possui infraestrutura necessária para criar e manter as informações desses testes genéticos com, por exemplo, bancos de dados e sistemas bem elaborados que sirvam como repositórios de informações genéticas.

Custos altos
Além disso, o custo da medicina de precisão é claramente uma força limitante para a sua adoção no Brasil. Acredita-se que o país tenha uma média anual de gastos com drogas especializadas para câncer acima dos US$ 100 mil. Esse desembolso, contudo, poderia ser menor se a medicina de precisão fosse focada em prevenção, não em cura.

 É preciso, porém, quantificar essa economia, coisa ainda não foi feita no país. “A intuição e o senso comum são de que a prevenção é mais barata que o tratamento. Mas, efetivamente, essa é uma hipótese que nunca foi adequadamente quantificada, com metodologia precisa, de forma que precisamos saber realmente quanto que a prevenção pode reduzir gasto em tratamento. Do ponto de vista médico, não há dúvida que é preferível”, diz Stephen Stefani, pesquisador e oncologista do Mãe de Deus Câncer Center, no Rio Grande do Sul.

Segundo ele, a disseminação ampla da prevenção via medicina de precisão permitirá, teoricamente, que os médicos identifiquem pacientes que possam se beneficiar de intervenções mais agressivas de prevenção, desde o uso de remédios até cirurgias precoces.

Adesões diferentes
O sistema de saúde público no Brasil primeiro permite que drogas se tornem comercialmente disponíveis por meio de processos que são diferentes dos do sistema privado. Esse último, que serve um quarto da população, move a proporção do orçamento nacional de saúde com o Sistema Único de Saúde (SUS), aumentando, assim, as perguntas sobre a equidade no acesso aos cuidados. Para ambos, no entanto, o processo de aprovação de drogas é regulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que requer dados apresentados a partir de ensaios clínicos randomizados bem conduzidos e que comparem a nova terapia com o tratamento corrente.

Uma vez que um medicamento é aprovado pela Anvisa, as diferenças entre os serviços público e privado de cuidados de saúde se tornam aparentes. No sistema público, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) estabelece o preço do medicamento. Apesar de o CMED ter um método transparente para fixar valores com fabricantes de medicamentos, muitas vezes,  o preço é muito alto para ser acessível aos hospitais públicos e clínicas. Como resultado, não se prescreve o remédio.

Por exemplo, no Brasil, a incidência de câncer de mama é de 50 mil novos casos por ano, dos quais cerca de 14 mil são causados pela mutação HER2. O medicamento trastuzumab, específico para esse tipo de câncer, foi aprovado em 2000. Por muitos anos, porém, o acesso a ele foi restrito a pacientes capazes de pagar do próprio bolso ou por meio de políticas de seguros médicos. Em outras palavras: a vasta maioria das pessoas com câncer de mama permaneceu sem acesso ao trastuzumab por mais de uma década devido ao alto custo. Em 2012, contudo, o Ministério da Saúde garantiu acesso ao medicamento pelo SUS, ainda que seu reembolso esteja limitado a algumas configurações. Mesmo assim, poucos hospitais validaram as técnicas para os testes genéticas de HER2, o que limita ou atrasa o acesso à terapia.

No sistema privado, seguindo a aprovação da Anvisa, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) analisa se uma droga pode ou não ser usada mediante aprovação distinta. Uma vez liberado, todos os seguros de saúde privados e empresas devem pagar pelo medicamento caso seja prescrito. Claro que o custo de um fármaco muito caro invariavelmente resulta em um aumento no valor mensal do plano de saúde, o que pode fazer com que os clientes particulares se vejam obrigados a se tornarem pacientes do SUS.

“Educação em saúde é a primeira etapa para que a saúde seja realidade no modelo que se espera. Não tenho dúvida de que a medicina de precisão será realidade. A questão é quando virá e com qual esforço. Nenhuma inovação em saúde se torna realidade se não houver educação, transparência, lideranças e vontade política”, acredita Stephen Stefani, pesquisador-sênior do estudo e oncologista do Mãe de Deus Câncer Center, no Rio Grande do Sul.

Palavra de especialista

Faltam parâmetros melhores

“O país precisa ter referências e parâmetros de excelência em saúde para que se possam estabelecer planos de desenvolvimento e crescimento alinhados não só com o que ‘pode’, mas com o que ‘deve’ se esperar da medicina. A medicina de ponta não pode ser privilégio de poucos, ainda mais quando se pode tê-la com um sistema com financiamento e gestão adequados. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) identifica que, quando mais se debate a saúde ideal, mais se luta para tê-la. O empoderamento do paciente e de seus representantes ajuda a definir prioridades de forma transparente e é um passo na direção de um modelo melhor.”

Stephen Stefani, pesquisador-sênior do estudo e oncologista do Mãe de Deus Câncer Center (RS)