Rolando Boldrin registra música feita "de brincadeira com essas duplas sertanejas ricas"

Com seu novo disco, 'Lambendo a colher', músico que irá completar 80 anos põe fim a hiato de quase uma década em sua discografia

por Eduardo Tristão Girão 28/06/2016 08:00
Matheus José Maria/Divulgação
Além de lançar disco, Rolando Boldrin vive no cinema um personagem "muito místico" no novo longa-metragem de Selton Mello, ainda inédito (foto: Matheus José Maria/Divulgação)

Rolando Boldrin, que completará 80 anos em outubro, está naquela fase da vida em que já acumulou enorme conhecimento, ainda tem disposição considerável e já se permite falar o que pensa sem ter de fazer tanta “edição”. Músico, ator e apresentador de televisão, beira as seis décadas de carreira, incluindo 35 novelas, 15 peças, quase 30 discos e a criação de Som Brasil, importante programa dedicado à música brasileira, que criou em 1981 para a Globo e cujo formato explora atualmente na TV Cultura, sob o nome Sr. Brasil. E, como defensor da cultura caipira, permanece incomodado com os artistas brasileiros que preferem “se vestir de faroeste”.

Começa dando o exemplo do cantor Sérgio Reis: “É meu amigo, mas tenho birra com ele pela imagem country. Jamais irá ao meu programa. Ele tem voz melodiosa, canta tão bonito. Para que por essa roupa? Na época, achava-se que só teria como fazer sucesso se fosse assim. Chamei-o para o meu programa, e ele falou que não tiraria o chapéu nem para o Fantástico. Falei que assim não ia dar. As duplas que vão ao meu programa vão sem roupa de show, sem chapéu. É um programa sobre o Brasil. Algum deles usa chapéu em casa? Essa imagem me aborrece, porque sou nacionalista. Canto o meu país desde os sete anos”.

O problema, aponta, começou no fim dos anos 1950, com artistas nacionais incorporando influências externas que considera de “mau gosto”. “Copiaram o pior, para ganhar dinheiro. Não tenho nada contra os intérpretes, de quem sou amigo, respeito e até levo ao meu programa. Chitãozinho & Xororó, por exemplo, foram ao programa e foi uma beleza, embora gostem de cantar coisas que acham que vende mais. Aliás, tem cantor romântico tipo Roberto Carlos que não sei porque se chama de sertanejo. O Daniel é um exemplo e ele tem projeto com o pai só de moda de viola que é muito legal, mas para fazer sucesso, é o Daniel romântico.”

Foram pensamentos como esses que o levaram a gravar A moda do invejoso, canção de autoria própria com a qual abre Lambendo a colher, disco que acaba de lançar e põe fim a hiato de quase uma década em sua discografia. Os versos expressam como se sente um violeiro da roça diante do sucesso das duplas sertanejas milionárias: “Minha voz é bem aguda / Meu irmão é afinado / Nóis cantando a coisa muda / Pra quem véve apaixonado / Nóis conhece uns caboclinhos / Que vieram do roçado / Hoje tem muitas fazenda / Muita criação de gado”.

“Fiz de brincadeira com essas duplas sertanejas ricas que gravam música de consumo, de mau gosto para burro”, conta. Em vez da viola e do violão, que há anos o acompanham, Boldrin resolveu arranjar a composição roceira de maneira diferente, chamando para o estúdio dois músicos de peso, o pianista Nelson Ayres e o flautista Teco Cardoso. Nas outras nove faixas do repertório, formações diferentes para dar vida a mais composições inéditas dele e outras de autores que marcaram sua trajetória, mas que também ainda não havia gravado.

“Não faço música toda hora, mas tenho coisas muito representativas. Vide vida marvada, por exemplo, é minha. Essa música começou na Globo e está no ar há mais de 30 anos, na abertura do meu programa”, conta. Em relação ao disco novo, ele cita, de sua autoria, o samba Maria Isabel: escrito nos anos 1960, não foi gravado em razão da censura imposta a ele durante o período de ditadura no país. “Outras não passaram pelo mesmo motivo, mas essa foi marcante”, conta. Vale lembrar que Boldrin chegou a atuar em grupos de teatro como o Arena, que tem no histórico momentos de enfrentamento político.

PSICOGRAFIA


Há duas canções no mínimo curiosas em Lambendo a colher, ambas atribuídas pelo artista a Noel Rosa. A primeira delas, O tal da Barata, é apresentada por Boldrin no encarte como “música inédita de Noel Rosa”. Ela lhe foi cantarolada pelo ator Geraldo Gambôa, nos anos 1960, num bar paulistano. Em tese, Noel recebeu dele a encomenda de uma música para um número de teatro de revista em que se vestia de mulher. “Achei que aquilo parecia com a escrita do Noel e confiei na palavra do Geraldo, tanto que atribuí ao Noel. Fizemos pesquisa e, se aparecer alguém reclamando, a gente vê”, brinca.

Já a segunda, Vila Isabel do espaço, tem gênese igualmente “problemática”, conforme relata Boldrin: “O autor da melodia, o grande maestro Hervé Cordovil, era muito meu amigo e, no início de carreira, eu conversava muito com ele. Sou apaixonado por Noel, sei tudo dele, e a letra me convencia de que era ele o autor. Depois é que o Hervé me contou que entrou num centro espírita e a letra foi psicografada. Aconteceu duas vezes de o Noel chamá-lo no centro espírita, e ele só atendeu na segunda vez”. Cordovil e Rosa são parceiros – nos termos tradicionais da palavra – em outra canção, Triste cuíca.

Ainda nessa categoria pode ser enquadrada De Maracangalha, chega, atribuída ao sambista carioca Dunga por Rubens Leite, este último conhecido por imitar cantoras da Era do Rádio e de quem Boldrin se tornou amigo décadas atrás, quando trabalhava como sapateiro em Catanduva, no interior de São Paulo. Seria resposta ao sucesso Maracangalha, de Dorival Caymmi. Completam o repertório o tema próprio Mariana e o trem de ferro e as gravações de Isso eu não faço (Tom Jobim), Canção primeira (Geraldo Vandré), Quem me compreende (Ary Barroso e Bernardino Vivas) e Romance de uma caveira (Chiquinho Sales, Alvarenga e Ranchinho).

TELONA

Em relação ao título do novo disco, o artista faz questão de esclarecer que não é uma sinalização de que vai parar de lançar discos (versão em LP do atual está a caminho). Ao contrário, já pensa no Lambendo a colher 2. “Tenho um arquivo estupendo”, revela. Não por acaso, anuncia participação em O filme da minha vida, longa de Selton Mello baseado no romance Um pai de cinema, do escritor chileno Antonio Skármeta, ainda sem previsão de lançamento. “Faço um maquinista de Maria Fumaça. Deixei a barba crescer, é um personagem muito místico. Já ganhei prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte no cinema”, orgulha-se.

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