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Estado de Minas

João das Neves fez da arte seu instrumento de luta política e identidade nacional

Brasil perde uma das maiores vozes do teatro brasileiro


25/08/2018 09:15 - atualizado 26/08/2018 14:16

Em Lagoa Santa, onde vivia, diretor e dramaturgo recebeu reportagem do Estado de Minas por ocasião de seus 80 anos (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press )
Em Lagoa Santa, onde vivia, diretor e dramaturgo recebeu reportagem do Estado de Minas por ocasião de seus 80 anos (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press )

Uma das maiores referências do teatro brasileiro, João das Neves foi incansável. De sua juventude até os últimos momentos, o artista nunca deixou de criar e pensar a cultura brasileira. Militante do teatro, foi ator, diretor, iluminador, cenógrafo e autor de diversas peças, além de se expressar pela poesia e exercer importantes parcerias com compositores e músicos.

Inquieto, sua luta por uma sociedade mais digna, justa e livre está refletida em toda a sua trajetória teatral, seja na constante busca por uma estética autoral ou pelos temas escolhidos para levar aos palcos. O exercício da arte, em especial o teatro, foi a arma nessa luta de João para transformar a sociedade, pois, como ele próprio afirmou: “A busca, a pesquisa de linguagem, por parte de nós, talvez seja até mais rigorosa do que nos outros. Porque a nossa estética é ligada, necessariamente, a uma ética”.

Desde o início dos anos 1990 vivendo em Minas Gerais, João das Neves faleceu na manhã de ontem em sua casa, em Lagoa Santa (MG), aos 84 anos, em decorrência de metástase óssea, deixando sua companheira, Titane e duas filhas, Maria João, de 29, e Maria Íris, de 17. O artista foi velado na tarde desta sexta-feira (24) no Cemitério Parque da Colina, em Belo Horizonte, onde foi cremado.

Atuante desde a década de 1960, João das Neves desenvolveu uma trajetória ligada às questões sociais e políticas. Em seus textos e na escolha dos espetáculos, está sempre presente a preocupação com grupos marginalizados e periféricos. Sua obra incorpora os mais diversos componentes da cultura brasileira, com olhar sensível para a multiplicidade de aspectos da identidade nacional. Fez teatro engajado como resistência à ditadura militar, levou à cena o debate sobre o feminismo ao montar espetáculo com elenco formado exclusivamente por mulheres, apostou na valorização da cultura afro-brasileira e na luta dos povos indígenas por suas terras e suas tradições.

REPERCUSSÃO A morte do teatrólogo repercutiu no meio cultural. O secretário de estado de Cultura, Angelo Oswaldo, lamentou em nota a morte do dramaturgo. “João das Neves se tornou um ícone, pelo seu papel histórico no teatro de resistência cultural e enfrentamento político. Era um mestre e jamais deixou de participar e incentivar novos valores nas artes cênicas. A cultura mineira se enriqueceu com sua presença luminosa entre nós”, diz o texto.

Chico Pelúcio, diretor e ator do Grupo Galpão, lamentou a morte do colega, com quem trabalhou. “João era uma pessoa muito especial, não só pelo talento e perseverança. Ele era fiel a um ponto de vista estético e cultural em acordo com as convicções dele, e trilhou um caminho muito coerente. Ele olhava para a cultura brasileira, e não somente a teatral, olhava para a cultura periférica, para as minorias, atento aos direitos dessas minorias. Eram invejáveis a energia e coerência da carreira do João”.

Em Belo Horizonte, Pelúcio conta que no Oficinão do Galpão, projeto de formação de atores e criação de espetáculos, o diretor teve papel importante. “Ao dirigir Madame Satã, João catapultou o teatro negro em Belo Horizonte. Foi uma iniciativa que ajudou a colocar na mesa o teatro negro, tema urgente, contemporâneo e necessário.”

Ator de Madame Satã, Denilson Tourinho destaca o fato de João das Neves ter trabalhado com não atores. “Ele caminhou com as pessoas das representações diversas do movimento social, abriu caminho, compartilhou o bastão para os fazeres diversos de ‘artivismo’”, diz, explicando que “artivistas” são pessoas que “fazem da arte e cultura meio de buscar a justiça social”. Rodrigo Jerônimo, codiretor de Madame Satã, lembra que “o Grupo dos Dez foi criado em 2008 por provocação do próprio João das Neves e da Titane”. “Ele dirigiu dois dos três espetáculos do nosso repertório. Falar do João é falar do meu trabalho”, diz Rodrigo.

Parceiro no espetáculo Homem de papelão, o diretor teatral Marcelo Bones diz que João era um agitador, destacando “a visão coletiva de todos os processos: artísticos e políticos”. “João sempre foi militante das políticas públicas para artes. Além de ser figura das mais importantes do teatro, teve papel importante na luta pela cidadania, pelos brasileiros, pelo ser humano. Um eterno lutador. Foi para o Acre, Piauí, estados do Norte e Nordeste. Fundou grupo de teatro com indígenas. Era inquieto, com pulsão de cidadania. Entendia o teatro como expressão política.” Marcelo Bones afirma que João das Neves é uma das grandes figuras da “geração que fundou o pensamento do teatro contemporâneo brasileiro, ao lado de Antunes Filho, Augusto Boal e José Celso”.

TRAJETÓRIA Sua ligação com o teatro se deu ainda na adolescência, que o levou à Fundação Brasileira de Teatro (FBT), onde se formou como ator e diretor. Sua primeira companhia foi Os Duendes, que atuou, sob sua direção, no Teatro Arthur Azevedo, na periferia carioca de Campo Grande, durante o governo de Carlos Lacerda, no início dos anos 1960.

Depois de o grupo ser expulso do espaço pelo governador, acusado de subversão, João das Neves integra o Centro Popular de Cultura (CPC), promovendo o teatro de rua, até ser novamente banido pelo golpe militar de 1964. Foi um dos fundadores do Grupo Opinião, atuando em várias funções – diretor, iluminador, cenógrafo e ator. Destacou-se na direção de peças importantes que criticavam a ditadura, caso de A saída, onde fica a saída? (1967), escrita por Armando Costa, Antônio Carlos Fontoura e Ferreira Gullar, O último carro (1976) e Mural mulher (1979), ambas escritas e dirigidas por ele.

O último carro, escrita nos anos que se seguiram ao golpe militar, apresenta a metáfora de um trem desgovernado, ao mesmo tempo em que compõe um retrato da vida na periferia das grandes cidades. O espetáculo ficou cerca de dois anos em cartaz e foi assistido por mais de 200 mil pessoas. Representou uma significativa ruptura no modelo convencional de teatro, pois o espaço cênico da arena foi invertido, colocando o público no centro da ação, com atores atuando em seu redor. Desde então, João frequentemente explorou espaços não convencionais, encenando em parques, florestas, espaços urbanos habitados ou abandonados, rompendo a tradição do palco italiano.

Em Mural mulher, com elenco exclusivamente de mulheres, são levadas ao palco questões sobre igualdade de gênero, lutas sociais, o movimento LGBT e outros. O texto foi criado a partir de entrevistas com mulheres de diferentes classes sociais e profissionais, formando um painel sobre a condição feminina no país.

A atuação de João das Neves não se restringe à dramaturgia e à encenação de espetáculos teatrais. Seu trabalho como escritor para o público infantil também reflete a preocupação com temas sociais, seja o racismo em O leiteiro e a menina noite (1970) ou a violência A lenda do Vale da Lua (1975). Em 2016, aventurou-se pela poesia, com o livro de haikais Rumores. E, em 2018, publicou Diálogo com Emily Dickinson, também de poesia, no qual estabelece uma relação imaginária com a escritora americana.
Seu domínio da linguagem do palco o fez ser convidado para dirigir shows de grandes artistas da música popular – Baden Powell, João do Vale, Chico Buarque, Milton Nascimento, Geraldo Vandré e outros. Mais recentemente, trabalhou em parceria com Elomar, Rufo Herrera e Titane, além de óperas (Qorpo santo, de Jorge Antunes).

Sempre atento aos movimentos de luta, João das Neves viveu por alguns anos no Acre, onde fundou o grupo Poronga, escrevendo e dirigindo obras de temática ambiental e indígena – Tributo a Chico Mendes (1988) e Yuraiá – O rio do nosso corpo (1990), texto ainda inédito, que retrata a saga do povo caxinauá.

MINAS
No início dos anos 1990, o teatrólogo escolheu viver em Minas Gerais. Companheiro da cantora Titane, estabeleceu com ela parceria na direção de shows e projetos musicais. Em Belo Horizonte, dirigiu duas peças escritas por Paulo César Pinheiro (Galanga e Chico Rei, de 2011) e Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri (2012), com 10 atores negros no palco. As três peças formam um conjunto com temáticas históricas ligadas à escravidão e à cultura afro-brasileira, assim como Madame Satã (2015), escrita em parceria com Rodrigo Gerônimo, sobre o personagem carioca.

A riqueza da cultura mineira recebeu a atenção do artista. Trabalhou com grupos de congado, o que resultou no espetáculo A santinha e os congadeiros, que conta o mito fundador do congado. Buscou no artesanato do Vale do Jequitinhonha inspiração para criar Maria Lira, sobre a artesã e pesquisadora de Araçuaí; e Ulisses, a trajetória, em que mescla a história do escultor Ulisses Pereira, de Caraí, ao mito do herói grego.

Em 2015, nas comemorações dos seus 80 anos, o ator e diretor foi homenageado com a exposição Ocupação João das Neves, no Itaú Cultural de São Paulo. Na ocasião, o acervo do artista foi restaurando e organizado e, posteriormente, doado para a Biblioteca Universitária, sob a guarda da Divisão de Coleções Especiais e Obras Raras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em 1992, encenou Primeiras histórias, baseado no livro de contos de Guimarães Rosa. A peça estreou no Parque Municipal Fazenda Lagoa do Nado, na Região Norte da capital mineira. Nesse diálogo com a literatura, merecem destaque também Troços e destroços, adaptação de contos do livro de João Silvério Trevisan, de temática homoafetiva; e Pedro Páramo, adaptação do romance do mexicano Juan Rulfo, encenada em um túnel suburbano desativado.

Também em 2016, voltou ao palco após 25 anos, para atuar em Lazarillo de Tormes, peça de autor anônimo do século 16 que faz uma sátira dos poderosos, expondo as mazelas da Idade Média, mas que permanecem as mesmas da atualidade. A adaptação ganhou toques de commedia dell arte, com máscaras e cenários alusivos à cultura hip-hop. “As histórias que o ser humano inventa, as situações sociais que enfrentamos, nossos embates para sobreviver são os mesmos, mesmo quando ambientados em sociedades diferentes”, afirmou ao EM na ocasião.


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