Quase trinta anos sua após morte, a voz de Gonzaguinha ainda ecoa forte na TV

Canções do artista abrem trilha de nova novela e confirmam o caráter contemporâneo de sua obra. Família diz que autenticidade é a chave

Ana Clara Brant 08/12/2019 06:00

Numa das cenas iniciais da novela Amor de mãe, a professora Camila (Jéssica Ellen) se prepara para seu primeiro dia de aula numa escola da periferia carioca. Ao entrar na sala, se depara com uma balbúrdia. Ninguém dá a mínima pra ela. Camila, então, recorre a maneira criativa de atrair os alunos. Começa a bater palmas e a cantar uma das músicas mais famosas de Gonzaguinha: É (É!/A gente quer valer o nosso amor/A gente quer valer nosso suor/A gente quer valer o nosso humor/A gente quer do bom e do melhor/A gente quer carinho e atenção).

“Boa tarde. Eu sou a Camila, a nova professora de história e vou dar essa matéria de um jeito bem diferente. Essa música que acabei de cantar tem tudo a ver com a história do Brasil. Ela é do Gonzaguinha, alguém conhece?” A maioria não faz a menor ideia de quem se trata, até que uma estudante pergunta: “Ele é filho do Gonzagão?”. Camila confirma e emenda: “Gonzaguinha fez essa música em 1988, quando o Brasil se livrava da ditadura militar.”

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O artista carioca, que morreu aos 45 anos num acidente de carro (1991), está mais do que presente na trama de Manuela Dias. É (que já fez parte de outras trilhas) virou o tema de abertura. E Sangrando, também de Gonzaguinha, embala os dramas da advogada Vitória, personagem de Taís Araújo. “Adoro o Gonzaguinha, e Sangrando tem a ver com a minha própria história. Lembro-me dos shows do Projeto Pixinguinha a que eu ia assistir no Teatro Francisco Nunes, em Belo Horizonte. Já a letra de É estava no roteiro, uma ideia da Manuela. Sentimos que deveria ser a música de abertura”, explica o mineiro José Luiz Villamarim, diretor artístico do folhetim.

E não só apenas na faixa das 21h o filho do Rei do Baião aparece atualmente. Suas músicas fazem parte das novelas As aventuras de Poliana, no SBT/Alterosa (O que é o que é), na reprise de Caminhos do coração, na Record (Caminhos do coração), e na própria Globo. Comportamento geral ganhou versão de Elza Soares na série Segunda chamada, enquanto que na voz de Ney Matogrosso está em Éramos seis. “As letras têm algo a dizer, e acredito que por isso afetam tantas pessoas. Daí estarem presentes em várias trilhas sonoras”, pontua Villamarim.

ESTREIA 

Não é de hoje que as músicas de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior marcam a teledramaturgia. De acordo com levantamento da Moleque Editora, que gerencia a obra do cantor e compositor, 26 produções (entre novelas, série e minisséries) já utilizaram suas canções. A primeira foi Espere por mim, morena, que entrou para a novela Locomotivas (1977, Globo).

Para a família, atemporalidade, originalidade, autenticidade e o talento justificam a recorrência. “Ele criou canções poderosas, algumas cheias de cobranças para dias melhores pra todo mundo. E nunca se distanciou das necessidades do povo. Era verdadeiro em tudo e por isso as pessoas cantam e amam tudo o que fez”, avalia Louise Martins, a Lelete, viúva do músico. “São um retrato dos dias atuais. Parece que Gonzaga acabou de fazer”.

Indiferente a novelas, ela assistiu aos primeiros capítulos de Amor de mãe e ficou especialmente tocada. “Achei interessante, emocionante ela (professora) transmitir aos alunos quem era Gonzaguinha e a importância da sua obra. O melhor é que as pessoas estão sentindo a energia e o vigor do trabalho dele, feito à flor da pele. Por isso acho que ele é tão atual”, opina.

O primogênito, Daniel Gonzaga, músico, acredita que fatores múltiplos explicam por que o pai está mais vivo do que nunca. “Ele era um compositor de mão cheia; aliás, um dos mais importante da sua geração. Sua obra é eterna, vigente”, frisa. Responsável pela Moleque Editora, Daniel destaca a ação “técnica” de tentar desvinculá-lo de esquerda ou direita. “Não há um artista tão democrático como ele, mas não significa que possa ser chamado de isento. Quem o conheceu sabe de suas convicções, o que defendia. É bacana perceber que, após quase 30 anos de sua morte, Gonzaguinha é mais presente do que muitos artistas que ainda estão aí”.

Ele acentua o perfil contemporâneo do trabalho e diz ser impossível dissociá-lo da política. “É nasceu no fim do regime militar, o Brasil prestes a realizar as primeiras eleições presidenciais diretas após anos de ditadura. Todas essas questões de esperança, de dias melhores, tudo está ali. E não só nessa composição. Você vê temas sociais, a luta por melhores condições de vida, recorrentes na vida do brasileiro e na obra dele”.

MPB ganha força em nova trilha

Não é só Gonzaguinha que embala a novela das 21h. Amor de mãe traz canções interpretadas por grandes nomes da nossa MPB, como Elis Regina, Clara Nunes, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Chico Buarque, Elza Soares, Caetano Veloso e Milton Nascimento. O diretor artístico José Luiz Villamarim ficou à frente desse processo da escolha da trilha sonora, assim como ocorreu em seus trabalhos anteriores (Onde nascem os fortes (2018) e Justiça (2016). “Quando li a história, logo achei que o samba tinha a ver com a novela. É uma trama extremamente brasileira, e nada mais brasileiro que o samba. E outro ritmo que também acho que se tornou algo bem brasileiro é o funk. Eu parti desses dois ritmos para a construção da trilha”, revela.

No entanto, pelo fato de ser uma história extensa e com muitos personagens de características distintas, ele acabou abrindo o leque e abarcou outros gêneros e artistas. “Eu não tenho preconceito e acho que numa trilha sonora de novela cabem quase todos os tipos de música. Em Amor de mãe, vamos de Fábio Jr. a Jards Macalé, passando ainda por Caetano Veloso com O estrangeiro, que eu considero um hino. Eu tinha até uma intenção, no início, de não usar músicas internacionais. Mas é uma novela contemporânea e a música estrangeira também ajuda a contar essa história”, reflete.

Mais do que meros temas de personagens, as composições têm uma função narrativa na trama. Aliás, o diretor artístico conta que faz questão de colocar as músicas nos ensaios e até nas filmagens para que os atores se sintam afetados pela trilha. Para ele, “sem música não há drama”. “Em geral, as músicas que eu uso no set estão também na trilha. Como eu trabalho com essa questão de sempre estar cruzando a linha, afetando, emocionando, em busca de catarses cênicas, a música é um instrumento que ajuda, potencializa. Eu uso música na preparação dos atores também. Acredito que ela causa um sentimento que fica na memória deles”, defende.
 
A obra Na TV

» Caminhos do coração 
(Caminhos do coração, 2007/2008, Record)
» Chão, pó, poeira 
(Saramandaia – segunda versão –, 2013, Globo)
» Comportamento geral 
(Éramos seis, 2019, Globo, e Segunda chamada, 2019, Globo)
» E vamos à luta 
(Duas caras, 2007/2008, Globo)
» Espere por mim morena 
(Locomotivas, 1977, Globo)
» É 
(Vale tudo, 1988, Globo, Vidas em jogo, 2011, Record, e Amor de mãe, 2019, Globo)
» Feliz 
(Eu prometo, 1983, Globo, e Caminho das índias, 2009, Globo)
» Geraldinos e arquibaldos 
(Duas caras, 2007/2008, Globo)
» Grito de alerta 
(Como uma onda, 2004, Globo, e A  lei do amor, 2016, Globo)
» Lindo lago do amor 
(Além do tempo, 2015, Globo)
» Mamão com mel 
(Selva de pedra – segunda versão –, 1986, Globo)
» Maravida 
(Amor à vida, 2013, Globo)
» Nem o pobre nem o rei 
(Vereda tropical, 1984, Globo)
» O começo da festa 
(Roque Santeiro, 1985, Globo)
» O preto que satisfaz 
(Feijão maravilha, 1979, Globo)
» O que é o que é 
(Belíssima, 2005, Globo; Vivendo o amor, 2010, Record; Carrossel, 2012, SBT/Alterosa; Plano alto, 2014, Record, e As aventuras de Poliana, 2018/2019, SBT/Alterosa)
» Ponto de interrogação 
(Coração alado, 1980, Globo)
» Recado 
(Fina estampa, 2011, Globo, e Pega pega, 2017, Globo)
» Sangrando 
(Amor de mãe, 2019, Globo)
» Ser, fazer acontecer 
(Sétimo sentido, 1982, Globo)









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