A vida em dois filmes - como o momento atual vem sendo sentido pelos profissionais de saúde

Transferida do ambulatório de geriatria para a unidade de atendimento a pacientes com síndrome respiratória aguda , médica vive entre a calma e o desespero

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(foto: PxHere)

A maioria de nós em determinados momentos das nossas vidas já se sentiu vivendo em um filme, e isto não é novidade alguma. Acontece, que de uns dias para cá a minha vida e a de muitos outros colegas profissionais de saúde tem tido momentos muito diferentes entre si.

Parte do dia nos preparamos para a batalha e em outra parte nos inserimos na também estranha sensação da vida familiar durante o distanciamento social. Isso está sendo ainda mais marcante e desafiador, quando em casa temos crianças que nos esperam.

As crianças não só nos esperam fisicamente, elas esperam de nós segurança e certeza que tudo vai dar certo e nós esperamos vê-las bem, saudáveis, em paz e, de preferência, alheias ao caos da vida lá fora. 

Para mim a vida vem sendo dividida entre os filmes Melancolia, de Lars Von Trier, e A vida é Bela, de Roberto Benigni. Em Melancolia, duas irmãs reagem de forma diferente à possibilidade de o mundo acabar; enquanto uma se desespera, a outra aguarda calmamente o momento do choque da Terra com o planeta Melancolia. Eu estou certa que o mundo não vai acabar tão cedo, mas ando envolvida nos preparativos para a chegada de um momento único e muito difícil da minha vida profissional. Eu aguardo ora calma, e ora desesperadamente.

Na última semana, fui deslocada do ambulatório de geriatria para a unidade, recentemente criada, de  atendimento aos pacientes com síndrome respiratória aguda do Hospital das Clínicas da UFMG. A unidade e o fluxo de trabalho estão muito bem organizados e agradecemos isso ao tempo que nos foi dado para a tomada das devidas providências. Ali cheguei, me paramentei, conheci meus novos colegas de trabalho, fui apresentada aos fluxos e protocolos, sentei e esperei, horas. A verdadeira Melancolia. 

Durante todo esse tempo, ir para casa não tem mais a mesma fluidez. Não dá para simplesmente, ir, entrar, ouvir o “mamãe chegou” e correr para abracinhos deliciosos. Ir para casa agora também segue protocolos e fluxos. Pago o estacionamento com cartão (álcool na mão), entro no carro (álcool na mão), troco o sapato no carro, entro pela porta dos fundos (álcool na mão e na maçaneta), deixo a roupa pra lavar e corro para o avisando em alto e bom tom: mamãe já vem dar abraço. 

Em casa encontramos crianças perdidas e com a vida de cabeça para baixo, querendo a vida delas de volta, com toda razão. Elas percebem que alguma coisa muito estranha se passa e os únicos que podem confortá-las somos nós, os pais.

É ai que A vida é Bela, literalmente, entra em cena. O desafio agora é relaxar, curtir as crianças, confortá-las e, tentar, mesmo sabendo não ser possível, esconder e protegê-las do medo, da insegurança e, também, do vírus. É pintar, cantar e dançar junto, contar histórias bonitas, fazer massa de pizza e papel marchê. 
Para muitas outras mães médicas, enfermeiras, fisioterapêutas e tantas outras “da frente de batalha”, a vida tem sido, no mínimo, bem exigente e desafiadora.

Uma grande amiga e enfermeira se mudou para um apartamento para proteger seu filho e seu pai, e anda trabalhando de coração partido. Minha cunhada e médica em São Paulo resolveu mandar os filhos de 7 e 2 anos para a casa do irmão no interior de Minas, para protegê-los. Eles ainda não foram e ela já sente saudade. Mãe sabe o que é isso, saudade por antecipação. 

Bem, o texto de hoje é endereçado a todas(os) nós, mães e pais que seguem divididos por aí, mas que tentam manter seus pacientes e familiares inteiros. 

Juntos somos muito mais que muitos!

Escreva para mim. Será um prazer receber as suas dúvidas: julianacicluz@gmail.com