Relacionamento violento entre o casal reflete na vida do filho

Relações conflituosas entre os pais acabam marcando os pequenos com efeitos até de longo prazo, como níveis altos de estresse e mesmo depressão e indisciplina

por Joana Gontijo 14/11/2018 16:00
Ilustração/Lelis
(foto: Ilustração/Lelis)

Não é novidade que os filhos têm no pai e na mãe um espelho, uma referência para viver. O problema é que isso pode acontecer tanto para o bem, quanto para o mal. Relações conflituosas entre os progenitores acabam marcando para sempre os pequenos, com efeitos até de longo prazo, afetando propriamente o seu bem-estar. Muito além de discussões cotidianas, quando o comportamento do casal deságua em violência, com gritaria, demonstrações mútuas de raiva, desrespeito, ignorância, agressões físicas ou verbais, está aí um grande perigo. Mesmo quando as crianças e jovens não são o alvo direto do abuso, são frequentemente colocados em situações de risco, uma vez no meio no fogo cruzado. Na medida em que estão envolvidos com hostilidades inter parentais severas ou crônicas, apresentam não apenas níveis altos de estresse, mas enfrentam consequências como interrupções no desenvolvimento cerebral, distúrbios do sono, ansiedade, depressão, indisciplina, entre outros.

A psicóloga Simone Francisca de Oliveira frisa que a convivência com cenas de violência gera impacto na formação de bebês, crianças e adolescentes. Seja qual for a etapa da vida, os filhos se miram nos pais, o que é normal e esperado, explica. "Independente da teoria psicológica a ser seguida, é sabido que o meio social influencia, tanto positivamente quanto negativamente, na constituição da personalidade da criança e do adolescente, e também nos seus preconceitos, nas suas reações frente a, por exemplo, frustração, na sua relação de gênero. Aprendemos a nos relacionar a partir da referência que temos dos pais", diz.

A profissional ensina que o modelo dos pais pode ser copiado ou negado. Quando a família é muito agressiva, os filhos podem escolher ir contra e desejar estabelecer relações diferentes, se esforçando para tanto. No caso inverso, continua, podem aprender que aquele é o formato certo, e, nessa medida, a violência invariavelmente é perpetuada. "Copiar as posturas violentas é o que não queremos que aconteça, por isso trabalhamos o aspecto preventivo. Levantamos a discussão, entre crianças e jovens, que, apesar de terem contato com famílias violentas, ou com situações de violência em seu meio social, eles podem fazer diferente, têm direito a uma vida diferente", elucida Simone.

Para que a violência não perdure, o ideal é que não ocorra. É importante que pai e mãe não tenham nenhum tipo de discussão perto do filho, seja qual for sua idade. "Muitas vezes, pode até ser que para o casal é uma discussão simples, banal, mas a criança assimila que, frente a uma discordância, pode bater, jogar objetos, gritar mais alto, usar termos pejorativos ou calar o outro. Se não conseguimos ter, como adultos, um diálogo, não devemos deixar a criança assistir uma cena de violência ou uma discussão. Muitas vezes nos preocupamos com a violência física, mas esquecemos que as violências psicológica e moral são muito presente nas famílias", enfatiza a psicóloga.

Seja uma união homoafetiva ou heterossexual, tanto homens como mulheres devem se pautar por laços em que haja espaço aberto para a conversa, continua Simone. No caso de maus tratos contra as mulheres, qualquer circunstância em que ela perceba que, diante de uma divergência, o parceiro se utiliza de uma noção de poder, tenta demonstrar que é quem manda, isso se aproxima de uma situação de machismo e, assim, deve ficar atenta para que esse quadro não se prolongue. "Iniciando um processo de violência, é difícil que seja único, ou seja, que ocorra apenas uma vez. É mais certo que vai se repetir. A mulher deve observar esses pequenos sinais e, se necessário, sair da relação. Caso não consiga, com a recusa do companheiro, deve procurar ajuda, seja familiar, profissional, psicológica, ou até da Justiça, indo a uma delegacia, fazendo uma denúncia. E principalmente quando há filhos, em respeito a eles. Ouço muitos casais dizendo, temerosos, que, com uma separação, os filhos vão ficar traumatizados, mas acontece o contrário. Se os dois permanecem em um relacionamento violento, abusivo, isso pode traumatizar os filhos muito mais que o divórcio. Quando o casal consegue se separar de forma amigável e os filhos permanecem em contato com os dois, terão menos chance de viver uma crise psicológica", alerta Simone Francisca.

Rombo no aspecto psicológico

No cenário extremo, de feminicídio, a criança e o jovem acabam diante de uma situação dupla de perda - perde-se a boa imagem do pai e perde-se a mãe de uma forma objetiva. Nessas horas, Simone lembra que não dá para caracterizar o tipo de trauma que o filho irá sofrer. "É o trauma de alguém que perdeu a mãe, perdeu a convivência com ela, com o agravante de ter sido o próprio pai que cometeu o crime. É um rombo no aspecto psicológico de uma criança, uma dor profunda, que pode e deve ser tratada, o mais breve possível", sublinha a psicóloga.

A felicidade dos filhos está diretamente relacionada à medida do amor que recebem de seus pais, ou de quem os cria, e a violência é o oposto disso, pontua o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o advogado Rodrigo da Cunha Pereira. "Filhos de pais separados, por exemplo, não são infelizes por isso. Filhos infelizes são aqueles cujos pais são violentos, brigam na frente deles. A violência doméstica deixa marcas profundas na psique das crianças, causando traumas de toda ordem, que muitas vezes vão aparecer só muito mais tarde", afirma. "Além disso, os pais não podem usar os filhos como arma, ou moeda de troca no fim da relação. Eles devem ser poupados, a qualquer custo, das desavenças entre o casal", salienta.

Talvez, a mesma mágica que faz um relacionamento começar, é o que o faz acabar, compara Rodrigo. Para ele, os motivos da atração são da ordem do desejo, muitas vezes inconsciente e, em alguns casos, o fim do relacionamento não é o fim do desejo, mas uma necessidade. "Por exemplo, quando há violência doméstica repetitiva, a única saída é a separação, ainda que a vontade seja ficar junto. Há barreiras entre o casal que são transponíveis, outras não. A violência, para muitos, é intransponível. Não há uma fórmula para saber se o companheiro (a) será violento. Todos, homens e mulheres, temos um potencial de agressividade, às vezes até saudável. Mas ultrapassar o limite e colocar em prática essa agressividade com atos de violência é inadmissível. Quando se chega à violência extrema, os traumas são inimagináveis, até indeléveis - aparecerão, principalmente, na futuras relações afetivas dos filhos que, por vezes, tendem a repetir o que assistiram em casa", ressalta Rodrigo.

Em um grito de alerta sobre a violência contra a mulher, o movimento Quem Ama Não Mata tem sua origem na década de 1980, primeiro com a participação de 30 mulheres, que, presentes em ato público no Centro de Belo Horizonte, chamaram a atenção para um problema que crescia a olhos vistos. Depois de denunciar as brutalidades cometidas contra as mulheres, com o passar dos anos as integrantes do grupo assistiram à criação da Lei Maria da Penha, das delegacias da Mulher, a qualificação do feminicídio, incluído no Código Penal. O tema conquistou visibilidade, mas as mulheres seguem sendo assassinadas, abusadas e violentadas, principalmente as negras. Os números assustam. O Relógio da Violência, do Instituto Maria da Penha, estima que, a cada 7,2 segundos, uma mulher é vítima de violência física. Diante disso, o Quem Ama Não Mata retorna à ativa, ganha as ruas e promove atos públicos na capital, com manifestações políticas, artísticas e culturais para reafirmar a urgência do combate aos crimes contra a mulher. A iniciativa não está atrelada a nenhuma corrente política ou religiosa. Muito antes, se posiciona contra qualquer tipo de discriminação religiosa, racial, capacitista, de gênero e de orientação sexual.