Chikungunya é ameação do verão no Brasil: número de casos é 880% maior que do ano passado

Bem adaptado, o micro-organismo avança por todas as regiões do país

por Paloma Oliveto 03/12/2016 09:20
Valdo Virgo / CB / D.A Press
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Em 1952, a população do sudeste da Tanzânia, na África, foi acometida por uma doença tão dolorosa que suas vítimas andavam com o corpo arqueado. A epidemia ficou conhecida como chikungunya - na língua kimakonde, “aqueles que se dobram”. O vírus CHIKV foi isolado e identificado em pequenos surtos na Ásia. Mas, por muito tempo, ficou adormecido. Até acordar, em 2004, no Quênia. Durante uma década, a ameaça se manteve distante do Brasil. Em 2014, porém, ela chegou. Agora bem adaptado, o micro-organismo avança por todas as regiões, com um número de casos confirmados até setembro 880% maior que de todo o ano passado.

O boletim epidemiológico mais recente do Ministério da Saúde mostra que, de janeiro a 20 de setembro, foram notificados 236.287 mil casos, sendo que, desses, 116.523 de fato eram febre chikungunya. Esse número deve aumentar significativamente nos próximos meses, pois o vírus é transmitido pelo Aedes aegypti, mosquito que se prolifera nos meses chuvosos de verão.

“O chikungunya entrou no Brasil antes do zika, mas o período de incubação dele é mais longo. Por isso, se propaga mais lentamente”, explica Luiz José de Sousa, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e diretor do Centro de Referência de Doenças Imuno-Infecciosas (CRDI-RJ), justificando o fato de, dois anos depois da entrada do vírus, haver uma explosão de casos. “Agora, a perspectiva é que este ano tenha um aumento muito maior, principalmente no Sudeste”, alerta o médico, também autor do livro Dengue, zika e chikungunya — diagnóstico, tratamento e prevenção.

Uma preocupação de Sousa é com o pouco conhecimento que se tem sobre a doença. “A dengue já foi altamente estudada. Mas há poucos estudos sobre chikungunya. Não se sabe, por exemplo, porque pacientes com doenças crônicas prévias, como diabetes e doença pulmonar obstrutiva, têm um risco de mortalidade maior. Sabe-se que há uma ação do vírus no endotélio vascular e no tecido das articulações, mas não se sabe o mecanismo”, exemplifica.

Crônicos
O comprometimento articular é o que leva as pessoas infectadas a “se dobrarem”. Uma das características da febre chikungunya é a poliatrite, uma dor muito forte nas articulações, principalmente nas regiões de mãos, punhos, tornozelos e pés. Em abril, a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) começou um estudo que, por enquanto, inclui dados de 431 pacientes. Os resultados iniciais indicam que a doença persiste por 14 semanas, sendo que a forma poliarticular é a mais comum (80,5%), com 100% dos pacientes queixando-se de dor, 52,9% deles com comprometimento da coluna cervical e 43,4% da lombar.

De acordo com a reumatologista Claudia Marques, da SBR, em 30% dos casos, as manifestações articulares da doença podem durar meses. Dentro desse percentual de pacientes, 5% cronificam, ou seja, jamais se recuperam e terão de fazer tratamento reumatológico para o resto da vida. Diante da expectativa de uma epidemia no verão, a SBR está elaborando um conjunto de orientações voltadas aos médicos. “Mesmo nos locais em que houve epidemia, os médicos da atenção básica são capazes de dar o diagnóstico, mas ainda não estão capacitados para o tratamento da fase crônica, e a gente precisa lembrar que não vai ter reumatologista para todo mundo”, justifica a médica, que coordena a elaboração do documento.

“Agora no verão, quem tratará o grupo que vai cronificar? Por isso a importância das recomendações que estamos fazendo, para que o clínico, o médico lá da ponta da atenção básica, se sinta mais preparado e tenha mais subsídios para tratar o paciente”, completa Claudia Marques. “Quando tínhamos só dengue, era uma coisa. Agora, temos epidemia de dengue, zika e chikungunya juntas. Numa epidemia, o médico tem de estar muito treinado, o risco de diagnóstico errado é maior”, concorda Luiz José de Sousa.

“Há poucos estudos sobre chikungunya. Não se sabe, por exemplo, por que pacientes com doenças crônicas prévias, como diabete e doença pulmonar obstrutiva, têm um risco de mortalidade maior” - Luiz José de Sousa, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e diretor do Centro de Referência de Doenças Imuno-Infecciosas

O problema da dupla infecção
Para complicar o quadro, evidências recentes sinalizam para o fato que o Aedes aegypti é capaz de transmitir, simultaneamente, mais de um dos vírus que ele hospeda. O infectologista e pesquisador Antonio Bandeira, da Sociedade Brasileira de Infectologia, publicou recentemente um artigo no Journal of Clinical Microbiology mostrando que, de abril de 2015 a janeiro deste ano, 13,3% de uma amostra de 15 pacientes analisados em um hospital de Salvador estavam coinfectados por zika e chikungunya. Agora, em uma nova avaliação, feita com 16 pessoas, 25% apresentavam a dupla infecção. “Isso é muita coisa”, observa o médico. “A coinfecção não aumenta a gravidade, mas o paciente acaba ficando com os sintomas das duas doenças”, diz. “Estamos falando de doenças que, juntas, são um terror”, destaca.

Bandeira ressalta a necessidade de agir contra o mosquito de forma apropriada. “Hoje, temos armas para combater o Aedes. Você tem o mosquito transgênico, que é completamente sadio e já se mostrou eficaz, ele reduz drasticamente os casos de dengue. Tem a contaminação do próprio mosquito com a Wolbachia”, exemplifica, referindo-se a pesquisas, incluindo uma da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que indicam que essa bactéria impede a contaminação do mosquito pelos vírus de dengue, zika e chikungunya. “São vários laboratórios correndo atrás disso. Então, o governo tem de investir nisso e em saneamento. Se você age em saneamento, age no mosquito.”

Índia
O microbiólogo Lucio Freitas Junior, pesquisador do Grupo de Ação Rápida para Doenças Emergentes (Garde) do Instituto Butantan, conta que a primeira vez que ouviu falar de chikungunya foi em uma viagem a Nova Déli, na Índia, onde estava ocorrendo uma epidemia. “Fiquei impressionado com o que vi. As pessoas pareciam zumbis, é uma doença muito debilitante. O que vi foi uma cidade doente”, recorda.

Freitas Junior cita um informe da Organização Mundial da Saúde (OMS) segundo o qual, em uma região da Somália, 80% da população e 50% dos trabalhadores da área de saúde foram infectados. “Precisamos aprender com a experiência dos países que já passaram por isso para nos prepararmos para dar uma resposta rápida”, diz. O cientista alerta que mais vírus hospedados pelo Aedes, como o mayaro, detectados este ano no Amazonas, poderão começar a se disseminar. “Estamos invadindo áreas em que os vírus estão em equilíbrio. Há três anos, eu alertava sobre o chikungunya e era criticado, diziam que eu era alarmista. Veja o que está acontecendo.”