Superação marca a história de quem engravidou controlando uma doença autoimune

Pacientes com lúpus e artrite reumatoide contam os desafios enfrentados para se tornarem mães

por Carolina Cotta 04/06/2016 06:00

Leandro Couri/EM/D.A Press
Cláudia Bossi, de 54 anos, tentou engravidar durante 20 anos, lutando para controlar o lupus e enfrentando fertilizações in vitro por ter perdido as trompas. Depois de ouvir de muitos médicos que não seria possível, teve o filho Sacha, hoje com 6 anos (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
De todas as cores, crenças e classe social. O lúpus eritematoso sistêmico (LES) e a artrite reumatoide (AR) só escolhem sexo e faixa etária: o principal alvo são as mulheres, e em idade reprodutiva. Receber o diagnóstico de uma doença crônica, no auge da vida adulta, por si só já é um drama. Descobrir que para engravidar serão necessários cuidados extras, que a experiência pode piorar a doença, que o bebê também corre riscos e que em alguns casos mais graves a gestação é contra-indicada e motivo de apreensão para muitas mulheres e seus familiares. A experiência de maternidade vem mudando na contemporaneidade, mas ainda é um desejo de muitas. E para realizá-lo, muitas vezes elas enfrentam um árduo caminho.

Aos 54 anos, Cláudia Bossi, psicóloga e mestre em psicologia pela Universidade de Sorbonne/Paris 5, curte cada momento do filho Sacha, de 6 anos. Tê-lo por perto não foi fácil. Além do lúpus, diagnosticado aos 42, ela recorreu à técnicas de fertilização in vitro (FIV) durante 20 anos. “Teve época de eu fazer quatro por ano, o máximo permitido”, lembra. Sacha é fruto de uma esperança que nunca morreu e da insistência da mãe, que ouviu de vários médicos que aquele sonho não seria possível. “Passei 33 anos fora do Brasil. Ouvi de todos os profissionais que procurei na França que não conseguiria. Fui à Suíça atrás de um especialista que disse que eu teria até um câncer, mas não um filho. E fui mãe aos 48 anos de idade”, se emociona Cláudia, que cria o filho Sacha, de 6 anos, em BH.

Pacientes com lúpus, principalmente aqueles com acometimento renal e anticorpos antifosfolípides, têm maior risco de desenvolverem abortamento, alterações do crescimento do feto, parto prematuro e a chamada doença hipertensiva específica da gravidez, mais conhecida como pré-eclampsia. Outra complicação rara, mas possível em mulheres com lúpus que engravidam, é o dito lúpus neonatal. Isso ocorre quando alguns anticorpos do lúpus, mas que podem ocorrer em algumas mulheres assintomáticas, e também naquelas com síndrome de Sjogren, especificamente o anti-Ro/SSA, atravessam a placenta e podem agredir o coração do feto em formação, levando ao bloqueio cardíaco congênito, lesões de pele e redução das células sanguíneas do recém-nascido. Tal complicação ocorre, em média, em 1% de gestantes que apresentam esses anticorpos positivos.

Cristina Horta/EM/D.A Press
Boris Cruz, secretário da Sociedade Mineira de Reumatologia: "O diagnóstico de lúpus não é contra-indicação para a gravidez. No entanto, as pacientes devem ser avaliadas adequadamente para melhor conhecimento dos riscos caso a caso e decidirem com seu médico qual é o melhor caminho (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
No entanto, todas essas complicações não são contra-indicação absoluta para a gravidez em mulheres com lúpus. Hoje, com melhor conhecimento da doença e melhores estratégias de acompanhamento e tratamento, é possível um melhor controle da doença e a maior parte das pacientes tem gestações bem-sucedidas, sem complicações. “Pacientes com doença controlada podem ser mães. O mais importante é o acompanhamento próximo do reumatologista e do obstetra, e o planejamento da gestação. Mas pacientes com lúpus mais grave, ou que já têm sequelas importantes da doença, como redução da função dos rins, não devem engravidar”, pondera Boris Cruz, secretário da Sociedade Mineira de Reumatologia.

O ideal é que a doença esteja inativa por, ao menos, seis meses antes da concepção. As pacientes devem ser submetidas à avaliação especializada antes de decidir sobre a gravidez, incluindo não só sua história clínica, mas a pesquisa de autoanticorpos que podem influenciar o curso da gravidez, caso dos anticorpos antifosfolípides, anti-Ro/SSA, e avaliação da função renal e pulmonar. “Mesmo com a doença controlada, a gravidez deve ser considerada como de risco aumentado, pelo que se faz necessário acompanhamento frequente dos médicos. A monitorização adequada da mãe e do feto permitem o diagnóstico precoce de eventuais complicações e há tratamentos possíveis para o lúpus durante a gravidez”, explica.

No caso de Cláudia, além do lúpus existia outro complicador. Por causa de uma forte infecção, ela perdeu as trompas, daí a necessidade da FIV. Depois de duas décadas tentando, e de finalmente engravidar, começou a segunda parte de sua luta: a gestação em si. “Foram sete meses na cama. Passava uma semana em casa, outra no hospital. Quanto mais o bebê crescia, menos plaquetas eu tinha. E isso exigia aumentar as doses de corticoide e imunoglobulina endovenosa. O risco de perder o bebê só aumentava”, recorda. Sacha nasceu prematuro, com sete meses, mas com três quilos, depois que Cláudia teve pré-eclampsia. Mas 24 horas depois de nascer teve uma brusca queda de plaqueta e passou 15 dias na UTI recebendo o mesmo tratamento da mãe. Hoje é um garoto saudável.

Soraia Piva/E.M/D.A Press
Gráficos mostram dados globais do crescimento no número de gestação de pacientes com lúpus e a queda das mortes maternas em decorrência da gravidez (foto: Soraia Piva/E.M/D.A Press)
Segundo Cristina Costa Duarte Lanna, professora de reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do ambulatório de lúpus eritematoso sistêmico do Hospital das Clínicas da UFMG, os dois principais riscos para os bebês são o lúpus neonatal com o envolvimento transitório da pele e as alterações do batimento cardíaco, resultado dos anticorpos que podem passar para o bebê. No primeiro, os anticorpos são eliminados em seis meses e os sintomas regridem. Já a alteração cardíaca é mais grave, apesar de rara. Trata-se de um bloqueio cardíaco que exige, em metade dos casos, o uso de marcapasso. “Se for incompleto a criança tem alguma sobrevida, se for completo nem sempre ela sobrevive. Mas algumas vezes, um bom pré-natal é capaz de identificar e abordar o problema antes”,diz.

EXPECTATIVA Este sábado foi escolhido por Simara Oliveira, de 31 anos, para registrar as lembranças de sua gravidez. Em algum lugar de Itanhandu, no Sul de Minas, ela e o marido, Tiago Henrique Oliveira, de 30 anos, posam para uma câmera. Querem poder lembrar desse momento tão esperado. Simara tem artrite reumatoide. Foi diagnosticada em 2007, depois de perceber as articulações inchadas. Na época, ela ainda não era casada, mas sempre teve planos para ser mãe. Naquele primeiro momento, o médico alertou que seria impossível engravidar. Os anos passaram, a medicina evoluiu e mesmo assim ela continuou ouvindo que ia dar.

Arquivo Pessoal
Com artrite reumatoide, Simara Oliveira, de 31, está no sétimo mês de gestação. A medicação precisou ser alterada seis meses antes dela engravidar. O nascimento de Clarissa está previsto para julho (foto: Arquivo Pessoal)
“Foram muitas decepções antes desse momento de tanta felicidade. Meu sonho era ter um filho. O médico que nos acompanha em uma doença como essa deve ser uma pessoa em quem a gente confia, sente amparo, busca todas as informações para uma vida mais tranquila. Ouvir dele que você não pode engravidar desmorona qualquer mulher. Fiquei muito decepcionada na hora, porque já tinha lido que era possível. Já tinha visto o depoimento de mulheres que conseguiram. Mas não foi apenas um que tirou minha esperança. Foram vários”, lamenta. Até que ela procurou um médico que já tinha atendido casos como o dela. A esperança voltou.

Dependente de medicações complexas para manter a doença sob controle, já que não se visa cura, e sim remissão, o controle da doença, Simara teve que se programar para engravidar. Parte da medicação precisou ser suspensa com antecedência, por causa do risco de malformação. Simara é paciente do Sistema Único de Saúde (SUS) e fará o parto na sua própria cidade. Segundo Eloisa Bonfá, professora titular de reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e diretora clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, na artrite reumatoide existe, em geral, uma melhora com gravidez e muitas pacientes conseguem reduzir a medicação nesse período. "O cuidado maior é no pós-parto, pois pode ocorrer reativação da doença", explica.

ELOISA BONFÁ - PROFESSORA TITULAR DE REUMATOLOGIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (FMUSP) E DIRETORA CLÍNICA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP


As dificuldades com a gestação se restrigem ao lúpus, artrite reumatoide e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo? Outras doenças autoimunes reumáticas têm impacto na fertilidade/gravidez?

As doenças autoimunes reumatológicas, de uma forma geral, não prejudicam a fertilidade, isso é, não existe dificuldade para engravidar. É, portanto, muito importante definir o momento adequado para a gravidez. Deve-se levar em conta alguns aspectos da gravidez normal que tornam o cuidado das pacientes com doenças reumatológicas mais rigoroso. Primeiro, porque existe um aumento do volume de líquido dentro dos vasos na gravidez normal, o que sobrecarrega o rim e o coração. Esse aspecto pode piorar o rim de pacientes que já têm problemas renais da doença reumatológica. Além disso, existe um risco aumentado de trombose na gravidez normal. Essa condição pode piorar o risco das doenças como a síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (SAF), que já tem um risco aumentado de trombose. A gravidez afeta de forma distinta as doenças reumatológicas. Na artrite reumatoide existe, em geral, uma melhora com gravidez e muitas pacientes conseguem reduzir a medicação nesse período. O cuidado maior é no pós-parto, pois pode ocorrer reativação da doença. No lúpus eritematoso sistêmico, a principal recomendação é estar em remissão clínica durante 3-6 meses antes de engravidar, já que isso diminui muito a chance de ativação da doença. A gravidez requer um cuidado especial pois parece existir uma tendência de aumento de surtos de atividade leves a moderados em qualquer período da gravidez e pós-parto. Nas pacientes com envolvimento renal, existe um risco aumentado de complicações graves como hipertensão da gravidez com quadro de eclâmpsia e pré-eclâmpsia e o monitoramento deve ser rigoroso. Na SAF a doença está associada com risco aumentado de trombose e complicações obstétricas (aborto, parto prematuro, hipertensão da gravidez, morte do feto, entre outras). A gravidez é sempre considerada de alto risco e o tratamento adequado melhora muito o prognóstico da gravidez. Outras doenças como polimiosite, dermatomiosite, vasculite e escleroderma não parecem afetar de forma significativa a gravidez. Nos casos com complicação de hipertensão pulmonar, a gravidez está contra-indicada.

Na "história" dessas doenças autoimunes, como foi conduzida essa dificuldade? Houve um momento em que a gravidez era algo contra-indicado? O que mudou esse cenário?
De uma forma geral, o acompanhamento multidisciplinar e a recomendação de estar em remissão clínica durante 3-6 meses antes de engravidar melhoraram muito as chances de sucesso na gravidez. Para SAF, por exemplo, o tratamento com aspirina e heparina com monitoramento rigoroso e acompanhamento também melhorou muito a chance de uma gravidez bem-sucedida. Algumas contra-indicações se mantêm, como hipertensão pulmonar e envolvimento de órgão nobre grave, como cérebro e rim. Outro aspecto importante é que algumas drogas podem afetar o feto e, portanto, a gravidez tem que ser planejada e não pode ocorrer com o uso dessas medicações. Entre elas estão os anti-inflamatórios, que não podem ser utilizados a partir da 32ª semana de gravidez por causa do risco de malformação fetal; assim como micofenolato mofetil, ciclofosfamida e metotrexato.

O fato de o pai, e não a mãe, ter uma doença reumática autoimune representa alguma dificuldade para o processo de reprodução?
Algumas medicações utilizadas para tratar doenças reumatológicas, como metotrexato e ciclofosfamida, podem afetar as células reprodutivas do homem. Esse efeito, em geral, é passageiro e existe um retorno à normalidade depois de três meses. Recomenda-se, quando possível, suspender essas medicações três meses antes da concepção. Em alguns casos, o uso prolongado de ciclofosfamida (e sulfasalazina) pode comprometer a fertilidade do homem.

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