Uma medicina para cada sexo: cientistas encontram provas de que os órgãos também têm identidade sexual

A descoberta reforça a ideia de que mulheres e homens podem ser beneficiados com tratamentos diferentes para as mesmas doenças, como as do coração

por Correio Braziliense 14/04/2016 15:00
No reino animal, algumas características fisiológicas, além do formato dos órgãos genitais, ajudam pesquisadores a diferenciar machos de fêmeas. São traços, como tamanho, cor dos pelos ou das penas e formato de alguma parte do corpo. Durante muitos anos, acreditou-se que essas características fossem definidas pela predominância de determinados hormônios, como a testosterona nos machos e o estrogênio nas fêmeas. Agora, no entanto, a genética indica que essas substâncias, apesar de fundamentais, não explicam toda a história, e propõe um olhar mais aprofundado sobre as diferenças orgânicas dos dois sexos. As pesquisas nessa linha podem implicar não só no conhecimento mais amplo da biologia, mas também alterar a forma como a medicina trata homens e mulheres.

Imperial College London / Divulgação
Machos têm intestinos mais estreitos (E) que fêmeas (foto: Imperial College London / Divulgação)
Um dos estudos mais recentes nessa área foi publicado na revista Nature pelo Centro Clínico de Ciências do Imperial College London, na Inglaterra. Nele, os cientistas da instituição mostram que as células do organismo carregam uma identidade sexual independente da atuação dos hormônios. Dessa forma, mesmo que machos e fêmeas tenham órgãos internos aparentemente idênticos, eles carregam informações genéticas distintos. Apesar de ter sido feita com moscas-da-fruta, a investigação traz pistas sobre por que homens e mulheres respondem de forma diferente a certos tratamentos de saúde.

Para demonstrar as diferenças moleculares nos insetos, a equipe analisou células-tronco do intestino de fêmeas e machos adultos e manipularam três genes para tornar o intestino “mais feminino” ou “mais masculino”. Nesse procedimento, observaram que o órgão mudava de tamanho, expandindo-se quando era “feminilizado”, ou comprimindo-se quando “masculinizado”.

O que surpreendeu os envolvidos no trabalho, liderado por Irene Miguel-Aliaga, é que a mudança das características do intestino não alteraram a circulação dos hormônios nem modificaram os órgãos reprodutores. “Se nós pegarmos a mosca que masculinizamos e a fecundarmos, veremos que seu intestino não volta ao tamanho normal, expandindo-se em resposta (hormonal) à reprodução. Então, nós acreditamos que a identidade sexual da célula-tronco confere uma plasticidade diferente ao intestino da fêmea”, explica em um comunicado Bruno Hudry, um dos autores do estudo. Essa é a primeira vez que essa plasticidade foi demonstrada em células adultas que não as das gônadas, os órgãos reprodutores, ressalta o cientista.

Distinção
Uma das apostas dos cientistas britânicos é que, se confirmados os mesmos resultados em humanos, será possível elaborar tratamentos diferenciados — e, consequentemente, mais eficazes — para homens e mulheres que sofrem de doenças hoje tratadas de maneira semelhante, como os males do coração.

A proposta não parece nada absurda para médicos que já percebem no dia a dia diferenças importantes entre pacientes homens e mulheres. É o caso do cardiologista Augusto Dê Marco Martins, ex-presidente do Congresso Brasileiro de Cardiologia. Há cinco anos, Martins publicou na revista Brasília Médica um artigo em que mostra a necessidade de mais estudos focados no público feminino para explicar, por exemplo, o alto índice de mortalidade de mulheres jovens por infarto, muito mais altos que as taxas observadas nos homens.

Segundo o cardiologista, até a década de 1990, os tratamentos para doenças coronárias nas mulheres eram desenvolvidos com base em pesquisas feitas majoritariamente com homens. “No início de 2000, começaram grandes estudos com mulheres, porque essas diferenças foram percebidas. Os sintomas são diferentes, e havia um retardo para diagnosticar, o que mostrou uma mortalidade maior de infarto. As razões para essa diferença ainda permanecem obscuras”, afirma Martins.

Predisposição
O time de pesquisadores ingleses também notou que o intestino das moscas fêmeas tem mais chances de desenvolver tumores quando comparado ao dos machos. “Tivemos mais facilidade para induzir tumores nelas. Suspeitamos que existe uma tendência, pois fêmeas necessitam desse aumento de plasticidade para lidar com a reprodução, mas, em determinadas circunstâncias, isso pode ser danoso e torná-las mais propensas a cânceres”, descreve a equipe no estudo.

Para Giuseppe Repetto, chefe do Serviço de Endocrinologia do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a explicação para que determinadas doenças ocorram mais em fêmeas do que em machos, como as da glândula tireoide nos humanos, está na diferenciação dos cromossomos que cada novo ser recebe dos seus progenitores.

A líder do estudo inglês concorda e observa que a origem da identidade sexual das células está nos cromossomos X e Y, que, combinados aos hormônios, podem indicar a origem de determinadas doenças. “A intrínseca identidade sexual das células é, direta ou indiretamente, controlada pelos cromossomos X e Y. Mas diferenças sexuais em doenças são também, em último grau, explicadas pelos hormônios sexuais em circulação”, diz Irene Miguel-Aliaga em entrevista ao Correio. Ela antecipa que o próximo passo de seu estudo será justamente investigar se as descobertas feitas nas moscas-da-fruta podem ser encontradas em humanos.