Adultos mantêm vivas as brincadeiras e conservam espírito lúdico da infância

Rotina intensa de trabalho, filhos para criar, compromissos urgentes e corre-corre fazem parte da vida de pessoas que, mesmo atarefadas, não abrem mão de incluir o brincar no dia a dia

por Lilian Monteiro 02/11/2014 08:28

jair amaral/em/d.a press
O empresário João César, de 37 anos, 'além de voar', se diverte pintando quadros, fazendo esculturas de material reciclado e peças de biscuit (foto: jair amaral/em/d.a press)
Não estranhe. O assunto é sério, papo de adulto. Você aí, vamos brincar? Acha que já é crescidinho demais para se permitir soltar pipa e andar de skate? Está errado. Ou doente. Ou vai ficar, se não mudar imediatamente seus conceitos. Quem avisa são psicanalistas, psicólogos, gente grande que não abandonou as brincadeiras e o cineasta Cacau Rhoden, que lançou este ano o documentário Tarja branca – A revolução que faltava, no qual defende, de maneira lúdica e criativa, o poder do brincar não só na infância, mas na fase adulta também.

De forma despretensiosa, Cacau mostra por meio de depoimentos de personalidade e anônimos, de origens e formações distintas, a importância da brincadeira na formação do ser humano. Com reflexões tocantes e alertas essenciais, ele mostra como o brincar precisa estar presente em todas as idades. A ideia é chamar a atenção de todos de como cada um tem lidado com seu espírito lúdico. O documentário é um convite a mantermos a criança interior presente e em atividade, sempre.

 

Documentário 'Tarja branca - A revolução que faltava' defende a importância de manter vivo o espírito lúdico no mundo adulto. Você se permite um dia a dia mais leve? Confira o trailer:

 

O brincar precisa estar no cotidiano do ser humano, mesmo que ele esteja mergulhado em compromissos, problemas, trabalho, horários, no embrutecimento da vida. Ao negligenciar o ato de brincar, o adulto se envolve numa couraça que prejudicará sua saúde mental e até física. Aliás, o nome do documentário – Tarja branca – é uma ironia aos remédios denominados tarja-preta, cada vez mais presentes no dia a dia de homens e mulheres, jovens, adultos e velhos.

 

Depressão, crises de pânico, isolamento, solidão, medo, ansiedade, doenças dos nossos dias que também estão relacionadas com a correria, estresse, cobranças, competição desenfreada... e com a falta do brincar. Em entrevistas, Cacau declarou que o filme destaca a importância de continuarmos sustentando o espírito que surge em nossa infância, e que o sistema nos impele a abandonar na vida adulta. Já é hora de se permitir brincar mais.

IMAGINÁRIO FÉRTIL

A psicanalista e psicóloga Maria Goretti Ferreira, com mais de 30 anos de experiência, reconhece que, às vezes, é tarefa árdua e penosa conciliar na vida adulta esse lado lúdico com a necessidade de sobrevivência e as demandas cada vez mais escravizantes e descabidas do mundo pós-moderno. Ela cita o escritor Fabrício Carpinejar: “Seja imprudente, porque quando se anda em linha reta não há histórias para contar”. Portanto, um imaginário fértil, dado a brincadeiras e folguedos, típico do nosso povo, herança das nossas raízes africanas e indígenas, não deve ser encarado como falta de austeridade ou de seriedade.

Sabe-se que grandes progressos científicos e tecnológicos surgiram a partir de uma curiosidade aguçada, de uma brincadeira tenaz, levada às raias da obstinação. Também não é preciso ser artista ou criar uma obra de arte para se brincar. Basta (e já não é pouco) descobrir o que faz o coração bater mais forte, com a sensação de plenitude e inteireza  ainda que fugaz e transitória  de que a vida vale a pena ser vivida, com fruição e deleite. Fiquemos com Manuel Bandeira: “... Vi terras da minha terra; por outras terras andei; mas o que ficou marcado; no meu olhar fatigado; foram terras que inventei...”.

O brincar está na pauta da vida do empresário João César Santos Maia, de 37 anos, que passou a infância no interior criando os próprios brinquedos: biboquê, carrinho de rolimã, pião... Adulto, sua brincadeira preferida é o aeromodelismo. “Além de voar, também fabrico os aviõezinhos. E se me canso de uma diversão, passo para outra. Jogo tênis, peteca, futebol, vôlei, futvôlei... Brincar faz bem e nos torna mais felizes.”

 

Marcos Michelin/EM/D.A Press
Aos 58 anos, o joalheiro Renato Pena Santos tira um dia da semana para jogar boliche com os amigos e se divertir (foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press)
Grazielle, Renato e João César já são bem crescidos, mas nunca deixaram de brincar. Todas as tarefas e encargos da vida adulta fazem parte do repertório de cada um. Mas eles decidiram, como super-heróis, encarar a vida de forma lúdica. Não é que eles saiam por aí pulando corda a toda hora, mas são pessoas que se divertem com a vida. Separam a hora do trabalho e da responsabilidade da hora de soltar gargalhada e esquecer de tudo diante de uma piada daquelas. Conhece a expressão popular “desopilar o fígado”? É isso aí.

“Viver sem brincar não tem graça”. Assim a educadora Grazielle Santos, de 38 anos, mãe de Isabella, de 4, decidiu levar a vida. “Hoje, priorizei cuidar da minha filha e ser mãe. O brincar, então, ficou ainda mais presente. Mas sempre fui alegre, comunicativa, bem-humorada e, mesmo nos meus dias ruins, não deixo transparecer e estou com um sorriso no rosto. Tento ser assim e o brincar me ajuda a encarar os dias não tão legais.” Ela acredita que a brincadeira é importante, “não só para a formação da Isabella, como para nos manter próximas. Não é uma obrigação. Ao brincar, volto no tempo, viro criança de novo. Resgato com minha filha uma infância que não existe mais, a do pega-pega, da queimada, do rouba-bandeira e a afasto um pouco do tablet, que já usava antes mesmo de falar”.

Para Grazielle, “brincar é criar um mundo de imaginação, o que é maravilhoso para crianças e adultos”. Ela concorda que não há incentivo melhor para a vida. “Sou identificada pelos meus amigos com a frase ‘só você mesma’. Isso porque sou a que vou para o parque e me divirto tanto quanto ou mais que minha filha. Fico ansiosa para ela aceitar andar no brinquedo que também posso ir. E levo os amigos juntos, mas eles fogem, preferem tirar fotos. Fico alucinada numa loja de brinquedos. Aliás, tenho os meus preferidos até hoje, as bonecas Meu Bebê, Bate-Palminha, Amiguinha e o Fofão. Eu até os empresto para Isabella, mas fiscalizo e deixo claro que elas são minhas.” A mãe coruja lembra que “o brincar não é literal ou só com minha filha, mas vivo intensamente cada minuto da vida como se fosse o último, gosto do simples, de sentar com amigos, de uma boa prosa, contar piada, rir do outro sem ser pejorativo. A vida tem de ser vivida de forma plena, sem criar estereótipo, já que ela é uma peça de teatro sem ensaio. Brinque sem se importar com o que o outro vai achar”.

BOLICHE

Aos 58 anos, o joalheiro Renato Pena Santos é defensor da brincadeira de adulto. “É necessária.” Quando criança, foi apresentado ao boliche com seus seis pinos de plásticos e a bolinha que exigia mira certeira para o strike. Bem grandinho, o hobby o transformou em jogador da Seleção Mineira, disputas de taças, calendários de jogos, medalhas, mas a diversão é a mesma. “Um dia da semana é sempre dedicado ao boliche. Um grupo de amigos se reúne, com um gozando o outro, e, se não formos vistos, só ouvidos, podemos passar por um grupo de crianças. É um encontro saudável de um bando de meninos.”

O boliche, revela Renato, o ajuda na rotina profissional, já que “precisa de concentração e demanda coordenação, tudo a ver com joalheria. São exigências essenciais na feitura de uma joia, na criação de uma peça. Então, o brincar está presente o tempo todo na minha vida. O boliche é prazer, lazer, esporte, adrenalina, enfim, é muito bom”. Mas Renato avisa que seu brincar também está no nadar na cachoeira, nas pequenas viagens para Macacos e Serra do Cipó, no jantar com a família... O joalheiro reforça que a criança interior não pode morrer. “No meu dia a dia brinco o tempo inteiro, cultivo o bom humor e já acordo alegre, otimista e elétrico. O espírito de criança não pode faltar, porque é a maneira de deixar a vida mais leve , é ele quem carrega a fantasia, a imaginação e temos de tê-lo presente diante de uma realidade cada vez mais dura, às vezes de filme de terror.”

AVIÃO

O aeromodelismo é o brinquedo que o empresário João César Santos Maia, de 37, escolheu para encarar o mundo real. Um hobby tão fascinante que ele não se contentou apenas em fazer manobras com os aviõezinhos na Lagoa da Pampulha, passou a fabricá-los. “Há cinco anos comecei a brincar, aprendi sozinho, e não consigo parar. A adrenalina de manter o avião no ar e você no chão é demais. Já caí algumas vezes na Lagoa, mas construí um barco de resgate, o rebocador, e tudo certo. Desde pequeno, sempre fui da ‘pá virada’, vivia subindo em árvore, andando a cavalo, me quebrando, enfim, brincando como nunca na casa dos meus avós no interior, ao lado dos primos. Hiperativo, cresci e apenas mudei de brinquedos, que me tiram da vida real.”

Para João César, o brincar afasta o estresse. “Tenho amigos que não estavam bem, eu os levei para o aeromodelismo, o adotaram como hobby e se livraram do médico e de remédios. Todos podem brincar, basta querer. Além dos aviões e do esporte que adoro, pinto quadros abstratos, tenho mais de cinco mil peças de biscuit, faço esculturas de material reciclado, é tudo autodidata. E trabalho, sou administrador de empresa e tenho uma casa de festas. Mas é preciso querer pôr diversão na vida. Você pode ser feliz e brincar de jogar pedra no rio. Tente, é legal e faz bem.” 

 

Veronica Manevy/Arquivo Pessoal/Divulgacao
"Brincar é importante para a saúde mental. Podemos observar as pessoas que adoecem mentalmente como entrando numa concha, uma cápsula, e se afastando da capacidade criativa do brincar", Maria Bernadette Biaggi, psicanalista (foto: Veronica Manevy/Arquivo Pessoal/Divulgacao )
O brincar tem vários ângulos e o adulto que preserva a criança que há dentro de todos nós não é só mais feliz, mas seguramente tem mais saúde. A psicanalista e psicóloga Maria Bernadette Biaggi, fundadora do Istituto Biaggi  Psicoterapia Psicoanalisi Cultura e Arte Brasil-Italia, instituição especializada no desenvolvimento humano, diz que o brincar é fundamental para o funcionamento psíquico e mental. “Essa função está ligada à capacidade de imaginar. É tão importante para o equilíbrio psíquico que a própria natureza nos presenteou com funções biológicas como o sonhar e o imaginar, para treinarmos uma ação e para nos prepararmos para o momento seguinte. Essas são situações em que brincamos livremente e sem censura, como no sonho noturno. O próprio lobo frontal, responsável pela discriminação, pela crítica, fica hipoativado no sonho para que possamos relaxadamente brincar com as nossas emoções e organizá-las para serem usadas ao acordar.”

Bernadette enfatiza que brincar nos prepara para a vida. “Não se resume de modo algum ao dançar, jogar, sorrir, andar de bicicleta ou montanha-russa, mas desenvolver a capacidade de relaxar enquanto nosso corpo se interage com o mundo e se prepara para, não somente estar vivo, mas existir como pessoa na sua essência e subjetividade.”

A psicanalista explica que o brincar é necessário para que possamos entrar em contato com a realidade da vida, com a cultura e nos tornar um ser social. “Trata-se de um espaço entre o eu e o outro e, portanto, um espaço de criatividade. O brincar convida o senso de humor para se expressar e nos levar a ter a mais saúde física e mental.”

Bernadette cita Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, que tem o brincar como verdadeira construção estética do nosso mundo interno. Ele dizia não se preocupar tanto ao encontrar uma criança, por exemplo, com dificuldades de aprendizagem ou que faz xixi na cama, mas sim com uma criança que não brinca. “Brincar é criar hipóteses, é desenvolver a capacidade de estar só na presença do mundo, é conhecer o próprio corpo no espaço e tempo. Brincar é importante para a saúde mental. Podemos observar as pessoas que adoecem mentalmente como entrando numa concha, uma cápsula, e se afastando da capacidade criativa do brincar. O mundo assim fica muito concreto, uma realidade sem cor, na vida como ela é, tão poeticamente retratada na obra de Nelson Rodrigues. Ele brinca com a falta de cor da concretude da realidade. Precisamos da área da ilusão para atravessarmos o rio da vida. O brincar é coisa séria para a saúde.”

Por meio do brincar, Bernadette lembra que é possível organizar “nosso mundo externo e interno”. Ela explica que, em estados de sofrimento e dor mental, a tendência do indivíduo é criar apenas uma hipótese e não encontrar assim saída para os desafios do viver. “Isso contribui para a ideação suicida, uma vez que as hipóteses abrem a mente para novas possibilidades e desenvolvem a capacidade de adiar e ter esperança em ver novamente as cores do arco-íris. O espirito lúdico é um organizador psíquico.”

RECHEIO E os excessos? Bernadette lembra que o brincar excessivamente pode ser um modo de defesa e, normalmente, contém muita agressividade disfarçada. “Há até quem use a brincadeira para agredir e assassinar a identidade de alguém. Sem dúvida, é uma das formas de se defender das relações mais íntimas e profundas. É paradoxal, porque é aquela velha história de brincar e alfinetar e, se o outro reclama, é tido como mal-humorado, como aquele que não sabe nem relaxar. Acaba por imobilizar a vítima com excessos de brincadeiras. Assim, excessos no brincar ou não brincar são sinais de alerta.”

A capacidade imaginativa, que é a área do brincar, pode ser danificada (função pré-consciente) em situações de grande sofrimento psíquico e/ou traumático, em especial na primeira infância. “O pré-consciente tem a função de ligar as impressões sensoriais, as sensações e as emoções à representação em palavras. É como se fosse uma ponte entre o mundo do inconsciente e a consciência e é, justamente nesse espaço entre os dois mundos, que a imaginação e o brincar podem ter a sua função plena na saúde mental. Vamos imaginar um hambúrguer daqueles benfeitinhos. Se tirarmos o recheio, fica pão com pão. O pré-consciente é o recheio da vida. Se estiver ausente, perde o sabor gostoso do hambúrguer. Veja que podemos variar os recheios e é justamente essa capacidade de brincar, imaginar, sonhar acordado que traz o prazer e relaxamento para sair da vida robótica e cheia de armaduras, da concreteza da realidade.”

Nesses casos, Bernardette aconselha buscar ajuda psicoterapêutica “para restaurar as funções do pré-consciente, para restabelecer novamente a capacidade imaginativa que a criança que habita em nós usava para preparar os hambúrgueres nas brincadeiras infantis”. Para concluir, ela lembra que graças à natureza não escapamos do brincar. “À noite, sonhamos e brincamos livremente. Nossos poetas, Toquinho e Vinícius, cantam a imaginação na música Aquarela: Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo/E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo...”

 

Liberdade para criar

“Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar cantando coisas de amor.....”, canta Chico Buarque. Quando se fala em brincar, pensamos logo em diversão, lazer, passatempo, ócio. Mas a psicanalista e psicóloga Maria Goretti Ferreira afirma que o brincar não é meramente uma forma de distração e muito menos um afazer qualquer, mas um fator primordial na constituição do ser humano, como função mediadora entre o mundo interno e a realidade externa. Portanto, “o brincar é uma questão vital, da ordem da saúde psíquica, em que vários aspectos da subjetividade são construídos, desenvolvidos, postos à prova e confrontados com as inevitáveis exigências e ameaças do que vem de fora”. Ele recomenda repararmos como uma criança lida com suas angústias, temores e conflitos ao enfrentar seus monstros, heróis, ídolos, obstáculos e desfechos que surgem ao longo de uma brincadeira... Como nos diz Mário Quintana: “As crianças não brincam de brincar. Brincam de verdade”.

De fato, Goretti lembra que não existe nada que uma criança leve mais a sério do que o brincar. Quando está envolvida, mostra-se motivada, concentrada, comprometida e o faz com enorme prazer. “Não seria esse o modelo a ser levado para a vida adulta? Ou seja, envolver-se prazerosamente e com seriedade com o que se faz, premido por uma força pulsional que busca tornar a vida mais interessante, mais criativa, menos repetitiva e com menos monotonia?”

CONCRETO

Como preservar ou mesmo instaurar o brincar na vida adulta? Goretti afirma que as respostas não são tão simples, objetivas e concretas. “Não é continuar a ser criança ou agir infantilmente para o resto da vida, mas manter-se conectado com o próprio ser, com a sua marca pessoal, com aquele traço que o torna peculiar, espontâneo, conferindo leveza e serenidade ao seu cotidiano, a despeito das asperezas do mundo. “As pessoas ditas bem-humoradas e espirituosas o sabem muito bem.”

Goretti enfatiza que brincar ou brincadeira também pode ser sinônimo de algo que se faz inconsequentemente, coisa de pouca importância, leviandade, preguiça, indolência. “Isto é, num tempo em que ficar parado parece pecado e dedicar-se ao que gosta pode ser execrado, caso não seja fonte de ganhos e lucros. Há que se ter coragem e audácia em não se submeter à automação, à robotização, ao apagamento da singularidade, lutando com galhardia para preservar o sonho, o espaço psíquico e a liberdade de criar.”