Pesquisadores de Israel transformam células adultas capazes de dar origem a qualquer tecido corporal

O avanço pode turbinar, por exemplo, tratamentos contra mal degenerativos, como o Alzheimer

por Isabela de Oliveira 20/09/2013 13:00

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Os resultados de uma pesquisa desenvolvida em Israel prometem acelerar os já efervescentes estudos focados na reprogramação celular. Cientistas do Weizmann Institute of Science conseguiram transformar uma célula adulta em célula pluripotente — que dá origem a qualquer tecido corporal — com quase 100% de sucesso. O trabalho, publicado na edição de hoje da revista Nature, vem no encalço das investigações que renderam ao britânico John B. Gurdon e ao médico japonês Shinya Yamanaka o Prêmio Nobel de Medicina do ano passado. A dupla é responsável pela descoberta do processo de conversão das estruturas celulares, mas, até então, os experimentos tinham nível de eficiência de no máximo 2%.

Para especialistas, os resultados descritos pelos pesquisadores de Israel são a prova de que a identidade celular é maleável e que pode ser reestruturada para gerar, por exemplo, uma célula com valor terapêutico. O conhecimento sobre como as decisões de desenvolvimento das células são tomadas e revogadas pode iluminar, inclusive, a compreensão da biologia do câncer, quando as células já maduras abandonam as suas funções para desempenhar outras prejudiciais ao organismo.

Thiago Fagundes/CB/D.A Press
Clique na imagem para ampliá-la e entenda a pesquisa (foto: Thiago Fagundes/CB/D.A Press)
Lidia Guillo, professora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), ressalta que os resultados vão permitir que, no futuro, células adultas sejam retiradas do próprio organismo de um paciente. “Elas poderão ser reprogramadas para embrionárias e usadas em terapias. Com isso, não haverá risco de rejeição e essas estruturas pluripotentes poderão tratar doenças degenerativas, como o mal de Alzheimer e o Parkinson”, acredita.

A resposta para a proeza dos cientistas israelenses está na proteína Mbd3, que impede a indução eficiente da pluripotência. “Começamos a trabalhar nesse projeto há dois anos e meio. Durante esse tempo, identificamos que o Mbd3 impede que células adultas sejam reprogramadas para o estágio embrionário. A partir da inibição da proteína, podemos ter mais controle sobre as células”, disse ao Correio o pesquisador-líder do estudo, Jacob Hanna. Esse papel de impedir a reprogramação natural é o que garante o crescimento e o amadurecimento dos seres vivos.

No estudo, foram utilizadas células humanas e de ratos. Inicialmente, Hanna e a equipe liderada por ele fizeram uma triagem dos fatores que poderiam aumentar dramaticamente o sucesso da reprogramação em camundongos. Rapidamente, identificaram o Mbd3 como uma proteína com a capacidade contrária: a de barrar o processo. A partir disso, concluíram que, ao inibi-la por um processo chamado RNA de interferência, haveria um aumento expressivo nas chances de sucesso da reprogramação.

“O pulo do gato foi estudar o estágio intermediário da reprogramação, quando as células ainda não se tornaram pluripotentes. É nesse momento em que o Mbd3 surge e governa, decidindo se a célula vai se diferenciar ou não. A equipe de Hanna fez com que essa célula não fosse expressa, o que permitiu a ativação dos outros genes”, descreve Guillo.

Disputa interna
Kyle Loh, pesquisador do Departamento de Biologia da Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA), compara a reprogramação a um “purgatório”, em que as células sofrem influências positivas e negativas. Essas duas forças duelam pelo sucesso ou pelo fracasso da indução da pluripotência. “Os genes ativos nas células pluripotentes estão latentes nas células diferenciadas, isto é, naquelas já adultas. Para induzir a pluripotência, os pesquisadores utilizaram esses fatores de reprogramação que têm como função reanimar a expressão desses genes dormentes”, descreve.

A introdução de quatro fatores de reprogramação, os OSMK (Oct4, Sox2,Klf4 e Myc ), é, portanto, a força positiva, sendo ela teoricamente suficiente para estimular a reprogramação das células-tronco. Os quatro componentes foram descritos por Kazutoshi Takahashi e Shinya Yamanaka pela primeira vez em 2006, na revista especializada Cell. Apesar dos esforços de os OSMK em reanimar os genes adormecidos, existe a influência negativa do Mbd3, que “sabota” o processo de pluripotência, impedindo que a célula volte ao estágio embrionário. Hanna descobriu que, por incrível que pareça, são os próprios OSMK que recrutam o repressor. Essa proteína, inadvertidamente, suprime os genes que deveriam ser reativados para que a célula se torne pluripotente.

“É difícil racionalizar por que os fatores de reprogramação recrutam Mbd3 para dificultar o próprio sucesso. Essa pode ser uma relíquia molecular de células-tronco, na qual os fatores de pluripotência interagem com o Mbd3 para silenciar os genes das células embrionárias a fim de preconfigurar o desenvolvimento das células maduras, já que esse é o processo natural: nascer, se tornar madura e não voltar ao estágio inicial”, especula Loh, que não participou do estudo.

A reprogramação, muitas vezes, produz células pré-pluripotentes. Elas são uma cópia imperfeita das células embrionárias, estão presas em um estado de pausa que as impede de prosseguir rumo aos eventos finais da reprogramação. É nesse momento intermediário, quando os fatores de reprogramação são introduzidos, que o Mbd3 deve ser silenciado. Ao ser combinado a condições ideais de crescimento, esse processo permitiu que células da pele, do sangue e do cérebro de ratos pudessem ser reprogramadas com uma eficiência acima de 90%.

No entanto, Loh adverte que a exclusão permanente do Mbd3 poderia impedir a futura diferenciação das células reprogramadas. Ou seja, fazer com que elas nunca alcancem a maturidade após a conversão em pluripotentes. Dessa forma, não poderiam ser usadas para substituir neurônios ou células da pele, por exemplo. Por isso, o pesquisador reforça a necessidade das técnicas que inativam transitoriamente essa proteína durante a reprogramação.

Mais autonomia
Para a professora Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), os resultados darão mais autonomia aos pesquisadores de células-tronco. “Esse é um estudo que tenta entender a versatilidade que uma célula adulta pode ter. A pesquisa nos mostra que não é tão raro e difícil assim realizar uma reprogramação bem-sucedida. Quem sabe com isso a gente não consiga domar melhor as células adultas e não apenas as embrionárias”, cogita.

Hanna também comemora os resultados atingidos. Segundo ele, a pesquisa é um grande avanço no sentido de tornar mais seguras as células pluripotentes sem modificações genéticas de alta eficiência. Além disso, os mecanismos moleculares descritos conduzem a uma derivação normal e não aberrante da reprogramação. “Essa é a primeira vez que uma conversão determinista e sincronizada é mostrada, na qual a célula doadora e a descendência dela conseguem se tornar pluripotentes com alta taxa de sucesso. O próximo passo é desenvolver inibidores químicos de Mbd3 e compreender a estrutura e a atividade bioquímica dessa proteína”, antecipa o autor do estudo.



Linha tênue com o câncer
“O trabalho é interessante porque demonstra uma briga durante a reprogramação entre os genes ativadores e inibidores. Esse repressor, o Mbd3, tem um papel importante nisso, e eu acho que esse é o primeiro passo para entendermos melhor todo o processo. Hoje, aqui no centro de pesquisa, trabalhamos muito com a reprogramação, mas nossa eficiência é baixa, ficando entre 1% e 2%. Esses pesquisadores dizem ter conseguido quase 100% de sucesso e isso é surpreendente. Mas devemos ter cuidado, pois existe um balanço tênue entre as células pluripotentes e as cancerosas. Precisamos de cautela para saber se não está sendo gerada uma célula doente. Essa é uma grande preocupação, pois, talvez, esse repressor tenha um papel muito importante também nesse processo. Por enquanto, ainda trabalhamos com células in vitro. Chamamos de ‘paciente no tubo de ensaio’. Se há alguém com uma doença genética, tiramos uma célula da pele da pessoa e reprogramamos as células diferenciadas para pluripotentes. Isso nos permite inúmeras pesquisas para correção de defeitos genéticos, além de nos ajudar a entender o porquê da mutação atingir mais um tecido e não outro. Podemos comparar mutações com diferentes quadros clínicos e testar drogas, coisa que não se pode fazer em um paciente.”

Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da USP