Internet permite que pessoas com problemas de saúde na família troquem experiências

Blogs, sites e redes sociais se tornam ferramentas de ativismo para compartilhar experiências de familiares com casos de distúrbios mentais e outras doenças e mostrar que eles não estão sozinhos

por Carolina Cotta 07/04/2013 15:06

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Euler Júnior/EM/D.A Press
A psicóloga Marta Alencar cria histórias com a Barbie cadeirante e fez um blog para ajudar seus pacientes (foto: Euler Júnior/EM/D.A Press)

O Cristo Redentor se vestiu de azul. Muita gente se vestiu de azul. Alguns blogs também adotaram a mesma cor. Em 2 de abril, Dia Mundial da Conscientização do Autismo, monumentos e pessoas aderiram ao movimento Light it up blue, estampando as cores que representam o transtorno do desenvolvimento que se manifesta na infância e afeta, segundo as últimas estatísticas dos Estados Unidos, uma em cada 50 crianças, sendo quatro meninos para cada menina. Andréa Werner Bonoli deixou para comprar sua camiseta na última hora. Não poderia sair sem ela. Afinal, é hoje uma das principais vozes sobre o tema.

Andréa não é uma especialista no assunto. Não formalmente. Mas ao ouvir do neuropediatra que seu pequeno Theo, hoje com 4 anos, era autista, quis espalhar isso ao mundo. Quis compartilhar com outras mães como são os desafios de lidar com essas crianças com comunicação, interação e comportamento afetados. Quis mostrar a outras mães que sequer conhecem o problema como é importante identificá-lo precocemente. Quis ajudar e quis ser ajudada. Quis ainda documentar para Theo seus pequenos grandes passos pela vida no blog Lagarta vira pupa (www.lagartavirapupa.com.br).

A internet promoveu esses relatos, pedidos e ofertas de ajuda. São milhares de blogs, sites e páginas em redes sociais representando grupos de pessoas dispostas a discutir um tema em comum. Ficaram para trás as listas de discussão que inauguraram o modelo. Nasceram as novas e mais potentes ferramentas de ativismo. Portadores de distúrbios e doenças, familiares que convivem todos os dias com essa realidade, profissionais envolvidos no tratamento e os próprios pacientes descobriram na rede um modo de dar visibilidade a seus problemas. Um modo de unir iguais, mesmo sendo eles tratados como diferentes.

A internet está cheia de Andréas. Cidadãos comuns que como ela não se resignam. Pelo contrário, soltam a voz por um ideal, por vida, dignidade e inclusão. Esse ambiente deu a eles ferramentas antes inacessíveis. De qualquer parte do mundo podem se indignar, cobrar, revelar o que acreditam valer a pena. Podem alcançar seus pares. Podem se unir em grandes redes de colaboração onde o coletivo faz a diferença. Andréa, Sônia, Marta, João Lucas... Conectados, eles estão modificando sua realidade. A de desconhecidos também.

Pequenas conquistas
Internet é aliada na batalha contra o preconceito e a discriminação travada por quem luta por visibilidade

Vinte e oito anos ao lado de crianças com deficiência física deram histórias e mais histórias para a psicóloga Marta Alencar, de 50 anos. Em seu trabalho na Associação Mineira de Reabilitação (AMR), ela vê famílias que apoiam, mas outras que rejeitam a condição dessas crianças com verdadeiras barreiras físicas, embora sem limites para a felicidade. Defensora de uma psicologia social, que extrapola as paredes da clínica e usa recursos terapêuticos de forma mais abrangente, viu a possibilidade, há alguns anos, de criar uma personagem para ajudar seus pacientes a vislumbrarem melhores possibilidades.

Na internet, em busca de uma boneca cadeirante, descobriu Becky, a amiga deficiente da Barbie. Fotógrafa, Marta percebeu a possibilidade de repetir uma brincadeira do filme O fabuloso destino de Amelie Poulain, quando a personagem principal produziu fotos do gnomo de jardim do pai pelo mundo, só para que o pai saísse da depressão e pensasse também na possibilidade de sair do seu mundinho. Assim nasceu a personagem Valentina e o blog Tina Descolada (tinadescolada.blogspot.com.br), com a qual tem conseguido tocar o coração de pacientes, familiares e profissionais.

“Ela é um modelo para crianças com e sem deficiência. Elas ficam encantadas em ver uma amiga da Barbie na cadeira de rodas. A ideia é que Tina crie uma rampa de acesso ao coração das pessoas. Hoje, temos uma legislação que exige a construção de rampas para melhorar a mobilidade, mas ainda são grandes as barreiras nas atitudes. Há muito preconceito e discriminação. As crianças com quem trabalho na reabilitação neurológica estão nas histórias da personagem. Tina é uma metáfora de possibilidades”, explica a blogueira, que tem hoje em média 50 visualizações diárias e mais de oito mil acessos em seu blog.

Marta é só um exemplo de pessoas dispostas a mudar uma realidade. Com seu blog, tem ajudado não só essas crianças a conquistarem melhores condições de vida. Tem ajudado também outros profissionais como ela. Recentemente, uma professora de Mossoró, no Rio Grande do Norte, entrou em contato com ela, interessada em multiplicar a ideia. Marta espera receber histórias dessas crianças de tão longe. “A internet é uma grande ferramenta. Sem ela não atingiria tanto o público”, comemora a psicóloga, feliz em dar mais visibilidade às crianças com deficiência.

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Arquivo Pessoal
Andrea Werner Bonoli virou blogueira para contar a história do filho, Theo, de 4 anos, com autismo (foto: Arquivo Pessoal)
Sua iniciativa não é diferente da experiência de Andréa Werner Bonoli, de 37, mineira radicada em São Paulo que virou blogueira para falar da doença do filho: o autismo. Com o diagnóstico, Andréa se apoiou nos médicos e terapeutas, logo vendo que não era suficiente. “Precisava conversar com gente que passava pela mesma situação.” Meses depois, descobriu grupos de mães na internet. “Foi essencial para mim. Acreditava que era a única pessoa passando por essa situação e foi muito bom poder dividir alguns sentimentos com quem realmente me entendia”, compartilha.

Andréa tinha deixado um emprego e queria ocupar a cabeça. “Comecei o blog Lagarta vira pupa como forma de registrar a história do Theo, hoje com 4 anos. A família apoiou e, por muito tempo, ela achou que só eles se interessariam. Se enganou. O endereço é hoje uma referência para outros pacientes e familiares. “Nunca imaginei que tanta gente iria se interessar. Mas um amigo compartilhou no Facebook, outro também, os seguidores começaram a crescer, veio gente pedindo ajuda e percebi que isso iria se transformar em um verdadeiro trabalho voluntário. É como eu encaro hoje.”

O objetivo foi mudando com o tempo. O que era um registro para Theo acabou virando um suporte para outras famílias e também divulgação da causa. Para Andréa, ainda há muito o que trabalhar no Brasil em termos de diagnóstico precoce, inclusão escolar e social. “Sempre que alguém me procura porque viu o blog e desconfia que o filho é autista os sentimentos são difíceis. Fico triste porque sei exatamente o que aquela pessoa está sentindo, mas feliz porque a criança vai ser diagnosticada mais cedo, e isso aumenta muito suas chances de sucesso no tratamento.”

Andréa se sente útil e feliz em poder ajudar tanta gente. E realizada por saber que muitas pessoas encontram consolo e esperança nas palavras que deixa ali. Para ela, ser mãe de uma criança diferente é também ter alegrias diferentes. “Meu filho voltou a dar tchau aos 4 anos. Que mãe de uma criança de 4 anos comemora um tchau? Cada pequena conquista é uma festa. É também, ter dificuldades diferentes. Todos têm problemas. Cada um tem sua batalha. Eu tenho a minha, mas isso não me impede de ser feliz e de ter muito orgulho do meu filho”, afirma.

BECKY CADEIRANTE

A personagem Tina Descolada foi criada a partir da boneca Barbie Share a Smile Becky, uma amiga da boneca mais famosa do mundo criada pela Mattel em 1996 para colaborar com o processo de inclusão social. Existe ainda uma versão da mesma boneca na escola de fotografia, a Barbie Becky I’m the School Photographer, com vários acessórios. As edições especiais não estão à venda no Brasil.

Espaço de troca
Redes de colaboração permitem compartilhar informações para ajudar a entender diferenças ainda vistas como tabus. Internet potencializa o ativismo desses grupos

Tudo bem ser diferente. Esse é o blog, mas também a crença da professora universitária Sônia Pessoa, de 41 anos. Em seu endereço na internet, www.tudobemserdiferente.com, e na página do Facebook, a mãe de Pedro, de 6 anos, inquieta e incomodada com as experiências em escolas inclusivas, alerta a sociedade sobre as diferenças e, principalmente, a importância de pensar a diferença sem preconceito. A ideia veio da inquietação que começou a viver com o filho. Quando bebê, Pedro teve hidrocelafia e um tumor benigno que o colocou em uma sequência de cirurgias até seu primeiro ano de vida.
Euler Júnior/EM/D.A Press
"A troca de experiências é uma catarse. Compartilho dramas, dilemas e desafios, e ao mesmo tempo levo à frente a experiência dos outros" - Sônia Pessoa, autora do blog Tudo bem ser diferente e mãe de Pedro, de 6 anos (foto: Euler Júnior/EM/D.A Press)

Pedro ficou com alguns problemas de coordenação motora, que não o impedem de desempenhar funções normais, mas que podem favorecer uma dispersão, uma baixa autoestima e mesmo a fuga de algumas atividades no ambiente escolar. Depois de uma experiência negativa com uma professora do filho, Sônia pensou que o ocorrido com ela poderia estar acontecendo com a vizinha, a mãe de outro coleguinha do filho, pessoas do Brasil e do mundo inteiro. Criou o blog para entender esse quadro, trocar ideias e encontrar alternativas.

O Tudo bem ser diferente está completando um ano. Pedro não só foi consultado se suas histórias poderiam ser compartilhadas, como fez o desenho do personagem adotado pela mãe. “Quando comecei, pensava que poderia ser um simples ativismo de sofá, porque se não trocamos ideia não conseguimos vivenciar o que ocorre no espaço público. Era um questionamento meu, eram minhas histórias, mas rapidamente o blog começou a receber demanda de mães e especialistas querendo discutir. Entendi que aquilo que li não era mais meu. Era um espaço de troca, que considero o melhor nome para o que faço ali.”

O tema foi ampliado. Sônia percebeu que vivemos numa sociedade com mais excluídos que incluídos. Tratou de fazer desse seu assunto. “Minha colaboração é essa troca de experiência. É mostrar que vivemos em uma sociedade hipócrita, que não reconhece a diferença, mas lida com ela o tempo todo. Olho ao redor e só vejo desiguais. O que determina os padrões para que uma criança seja x ou y?”, questiona a blogueira, cuja página tem média de 500 acessos diários. “Atingi mais do que queria. Essa troca de experiência é uma catarse. Compartilho dramas, dilemas e desafios, e ao mesmo tempo levo à frente a experiência dos outros.”

REVIRAVOLTA

Marcos Vieira/EM/D.A Press
O analista de TI João Lucas Nunes aproveitou sua experiência com tecnologia para ajudar outras pessoas com nanismo (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
O analista de TI João Lucas Nunes de Souza, de 23 anos, sabe o que é estar fora desses padrões. João tem acondroplasia, o tipo mais comum de nanismo. Quando nasceu no interior da Bahia, o fato foi uma surpresa e um choque para toda a família. João logo entendeu que era diferente. Aos 4 anos, percebia os colegas crescendo e ele ficando para trás. Foi quando chegou a Belo Horizonte para estudar, há 6 anos, que João mudou seu jeito de encarar as pessoas e a vida. “Era um bicho do mato. Uma pessoa muito fechada. Vim sozinho para BH e precisava fazer amigos. Isso mudou meu jeito de ser.”

Foi quando teve a oportunidade de conhecer outras pessoas com nanismo e percebeu sua forma de ver a deficiência mudar. “Não lembro 24 horas que tenho nanismo. Sou bem resolvido, mas esse recente contato com meus pares me fez enxergar tudo sob outro ponto de vista. Não sabia, por exemplo, se outros como eu se sentiam de forma parecida, se conseguiam não lembrar todo o tempo de sua deficiência. Hoje, sei que essas pessoas levam uma vida normal, como sempre tentei levar. Esse contato me fez perceber que eu estava no caminho certo.”

João amadureceu com as descobertas. E quis usar sua experiência com tecnologia para ajudar outras pessoas com nanismo. Com a namorada, Roberta Vieira, que também tem a deficiência, criou o blog Nanismo em foco (www.nanismoemfoco.com), hoje a página mais acessada sobre o assunto no Facebook. “Víamos a necessidade de algo que falasse dos nossos assuntos. Não achávamos isso na internet, as informações eram sempre científicas e antigas. Apliquei meu conhecimento profissional e experiência com a manutenção de outros blogs para mostrar o lado mais humano da pessoa com nanismo.”

O blog completou um ano em janeiro. São de 50 a 110 acessos diários no blog e mais de 430 seguidores na página da rede social. “São pessoas como nós, amigos, familiares e profissionais que lidam com o nanismo. É gratificante receber os relatos de pais antes desesperados, questionando se seus filhos terão uma vida normal. No blog eles nos veem levando uma vida como qualquer outra pessoa, trabalhando, namorando. Somos um exemplo para outras pessoas com nanismo. Nunca imaginei poder ajudar essas pessoas. Fico muito feliz.” (CC)

ENTREVISTA » A luta pela visibilidade

Beatriz Bretas - Doutora em Ciência da Informação

Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Desde seus primórdios, a internet revelava vocação para o compartilhamento e para a colaboração. A popularização da rede de computadores veio acompanhada da ideia de agregação de pessoas com interesses, gostos e desejos comuns, formando as chamadas comunidades virtuais. Essas identificações, como explica Beatriz Bretas, professora aposentada do Departamento de Comunicação Social da UFMG e pesquisadora de comunicação mediada por computador e redes colaborativas, permitem que um se reconheça no outro e que vínculos sejam criados, estabelecendo laços de confiança, credibilidade e afeto. Assim, os participantes sentem-se encorajados para expressar suas experiências.


Como a internet vira parceira dos interessados em dar voz a problemas e ajudarem seus pares?

A internet situa-se num contexto de conexão generalizada, no qual a maior parte das pessoas utiliza dispositivos de comunicação para obter informações, disponibilizar conteúdos e estabelecer contatos, duradouros ou não. O telefone celular, o computador e os tablets já fazem parte do nosso cotidiano, sendo cada vez mais incorporados por diferentes gerações e segmentos sociais. A internet hoje não evoca somente uma enorme presença dessas ferramentas, mas uma mudança qualitativa que possibilita a comunicação de muitos para muitos, favorecendo a formação de redes de solidariedade e ajuda mútua.

Que características promovem esse aspecto colaborativo?

As potencialidades tecnológicas que promovem as interações em rede são estímulo às agregações de pessoas que enfrentam situações parecidas. As ferramentas de interação nas redes sociais, nos fóruns e nos blogs, por exemplo, facilitam a publicação e disseminação de conversas, imagens e vídeos. Os recursos expressivos com os quais contamos hoje acabam sendo encorajamentos à participação, já que são pouco onerosos e relativamente fáceis de serem apropriados. Mas o que parece mais fascinante é a descoberta da força das conversas em torno das questões vivenciadas pelos interlocutores. Palavras e imagens, dentro desses contextos, apresentam potências de mobilização para diversas causas e muitas vezes conseguem propiciar apoios mútuos.

Como esses agrupamentos devem usufruir da internet no futuro?

Vejo esses agrupamentos como comunidades éticas que zelam pelo cuidado com o outro, seja o portador dos distúrbios ou doença, sejam os familiares. A luta pela visibilidade de seus argumentos e ações tende a crescer, na medida em que, ao ganhar o espaço público da internet, amplia-se a sensibilização e a convocação ao engajamento de outras pessoas. Os bons resultados que temos visto, em termos de mobilização na defesa e garantia de direitos, assim como da solidariedade angariada, sugerem que os participantes dessas redes se apropriem cada vez mais dessas ferramentas e espaços.