Conheça as diferenças entre o ano 2019 do clássico de ficção científica Blade runner e o ano em que estamos

Cult da ficção científica na literatura e no cinema ganha nova edição brasileira, sem prever avanços como a internet e o celular, mas apontando outros que ainda estão por vir

por Renan Damasceno 02/08/2019 09:04
O 2019 de Blade runner é em um mundo obscuro e distópico, pós-apocalíptico, com uma ininterrupta chuva ácida em cenários vazios e destroçados. Muitos animais foram extintos e os que sobraram se tornaram artigos de luxo, com tabelas de preços. Criar um novilho ou um esquilo no quintal é símbolo de status.

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A certa altura de Androides sonham com ovelhas elétricas?, clássico de ficção científica escrito por Philip K. Dick e que deu origem ao filme Blade runner , a android Pris conversa com J. R. Isidore, um humano desprovido de inteligência, um “cabeça de galinha”, que vive entre entulhos e prédios abandonados que sobraram na Califórnia. Pris explica para Isidore como era a vida em Marte antes de ela e outros da super-raça Nexus-6 – a mais evoluída dos replicantes – migrarem para a Terra. Pris discorre sobre como o Planeta Vermelho era solitário, antigo e também sobre seus hobbies, entre eles a paixão por livros de viagens espaciais escritos na Terra antes da Guerra Mundial Terminus, que deixou nosso planeta praticamente inabitável.

Isidore fica curioso: “Como podiam existir histórias sobre viagens espaciais antes...”. Pris interrompe: “Os escritores inventavam isso”. “Baseados no quê?”, retruca o humano. “Na imaginação. Eles se equivocaram inúmeras vezes. Por exemplo, eles descreveram Vênus como uma selva paradisíaca com monstros enormes e mulheres usando brilhantes protetores peitorais. Isso te interessa? Mulheres com longos cabelos louros trançados e protetores peitorais reluzentes do tamanho de melões?”, questiona Pris, praticamente descrevendo um imaginário dos livros e filmes futuristas, como a Barbarella, de Roger Vadim, interpretada por Jane Fonda, e tantos outros.

O futuro de Blade Runner chegou. O livro se passa em 1992, enquanto a trama da versão levada ao cinema pelo britânico Ridley Scott, em 1982, ocorre em novembro de 2019, daqui a três meses. E ironicamente, como no diálogo de Pris e Isidore, a Terra não está hoje como previsto por Dick na obra escrita em 1968 – não que a ficção científica tenha o poder ou dever de prever como será a vida humana daqui a algumas décadas ou milênios (para nossa sorte, na maioria dos casos).

O 2019 do mundo real ainda está longe dos possantes carros voadores que o caçador de recompensas Rick Deckart (Harrison Ford) pilota para ‘aposentar’ os androides Nexus-6, os seres artificiais de composição biológica, à imagem e semelhança dos humanos, criados por uma corporação para ser escravos, mas que se tornam uma ameaça na Terra. Blade Runner não previu os celulares, mas chegou perto da era em que vivemos: os contatos eram feitos por um vidfone, uma chamada de vídeo que conectava a pessoa diretamente com a imagem do interlocutor.

O 2019 de Blade runner é em um mundo obscuro e distópico, pós-apocalíptico, com uma ininterrupta chuva ácida em cenários vazios e destroçados. Muitos animais foram extintos e os que sobraram se tornaram artigos de luxo, com tabelas de preços. Criar um novilho ou um esquilo no quintal é símbolo de status. Quem não tem bichos de estimação se contenta com réplicas – como a ovelha elétrica que Deckart tem vergonha de ser dono, o que o obriga trabalhar diariamente atrás de uma recompensa suficiente para trocá-la por um animal de verdade.

A história da ovelha, que abre o livro, não está no filme. Isidore, nas telonas, foi rebatizado para J. F. Sebastian. O nome Blade runner também não é da obra de Dick. Foi sugestão de um dos roteiristas, já que Scott achava o título original obscuro demais para um filme.

IMPACTO CULTURAL

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Clássico do cinema cult, na prateleira de cima das principais listas de melhores filmes de todos os tempos, Blade runner angariou fãs e influenciou filmes, animes, bandas, videogames e séries – de Akira a Minority Report, também inspirado na obra de Dick. Mas não foi bem assim antes do lançamento: a Warner não ficou feliz com os testes de público nas prévias, fazendo inúmeras alterações – tanto que, na década de 1990, foi relançada em VHS e DVD uma “versão do diretor” digitalmente remasterizada sob supervisão de Scott. A versão tem 117 minutos, quatro a mais que o original levado às telas na década anterior.

Em 2017, Blade runner ganhou uma continuação, Blade runner 2049, dirigida pelo canadense Denis Villeneuve. Trinta anos depois da trama apresentada por Scott, o caçador de recompensas K (Ryan Gosling) tem a missão de exterminar antigos modelos que ameaçam a vida humana. Durante a jornada, descobre uma pista para descobrir o paradeiro de Rick Deckart (novamente vivido por Harrison Ford), desaparecido há 30 anos.

Na semana passada, o filme ocupou as manchetes por causa da morte do ator holandês Rutger Hauer, de 75 anos. Com cabelos louros, olhar psicótico e rosto ruborizado, Hauer deu vida ao vilão Roy Batty, chefe dos andoides Nexus 6 na versão original. O discurso final de Batty, após confronto final com Deckart, é uma das cenas mais lembradas de Blade runner: “Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar (...) Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva...”. As palavras finais foram improviso do próprio ator, revelou anos mais tarde um dos roteiristas.

Já o livro de Philip K. Dick acaba de ganhar nova edição no Brasil, pela Editora Aleph, com tradução de Ronaldo Bressane. A editora optou por trazer na capa o nome Blade runner, que o tornou mundialmente popular. O título original Androides sonham com ovelhas elétricas? está na contracapa, acompanhada da ilustração de Rafael Coutinho. O livro traz ainda extras como a carta de Dick aos produtores do filme, posfácio do jornalista e tradutor Ronaldo Bressane – que traça paralelo entre filme e livro – e a última entrevista concedida pelo autor, à revista The Twilight Zone.

Descrito pelo The New York Times como “uma espécie de Kafka do pulp fiction”, Dick nasceu em Chicago, em 1928, e escreveu mais de 40 livros. Sua obra, marcada pelo questionamento da condição humana e da realidade, mudou profundamente o gênero da ficção científica, explorando temas políticos, filosóficos e existenciais. Além de Blade runner, a obra de Dick também inspirou e baseou filmes como O vingador do futuro (dirigido por Paul Verhoeven, em 1990, estrelado por Arnold Schwarzenegger) e Minority report (de Steven Spielberg, 2002, com Tom Cruise).

Dick acompanhou com ansiedade e entusiasmo a produção do filme, discutiu detalhes com diretor e roteiristas, mas não chegou a vê-lo pronto. O longa estreou nos cinemas três meses depois da morte do escritor, vítima de AVC em fevereiro de 1982, aos 53 anos. Em sua última entrevista, Dick ressaltou: “Depois que acabei de ler o roteiro, peguei o livro e dei uma espiada geral no texto. Os dois materiais se reforçam mutuamente. De forma que a pessoa que começasse lendo o livro iria curtir o filme e quem visse antes o filme, iria gostar de ler o livro.”

Blade Runner
De Philip K. Dick
Editora Aleph
288 páginas
R$ 49,90