Em novo livro, Maurício Lara reflete sobre encontros e desencontros existenciais

'O que é ser feliz?' é a pergunta que se fazem os personagens, que ainda esperam pela grande resposta

por André Di Bernardi Batista Mendes 12/07/2019 09:11
Divulgação
(foto: Divulgação)

O jornalista e escritor mineiro Maurício Lara lança Réstia de alho, seu décimo livro. Natural de Esmeraldas, Lara trabalhou como repórter, editor e produtor em rádio, jornal e televisão, assessorou instituições públicas e privadas, atuou como professor de jornalismo e atualmente é diretor do Instituto Ver Pesquisa e Estratégia. Carlos Herculano Lopes, escritor e também jornalista, que assina a orelha da obra, chama a atenção para a fina sensibilidade do ficcionista e do repórter para compor o romance. O próprio autor explica: "Talvez possa ser dito que valho-me da experiência de repórter e das vivências para criar as histórias do romance".

Influenciado por nomes como Jack London, João Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Fernando Sabino, José Saramago e Franz Kafka, entre outros, Lara conta a história de um fazendeiro, Joca Ferrão, um homem rude (dono de uma ternura tensa conjugada a uma brutalidade nata), que tem dois postos de observação em sua vida: a janela da sala da casa simples, de onde ele vê o curral, o pasto, suas vacas (ali ele vê seu mundo externo); e o porão de sua fazenda, com cheiro de alho que ele colhe e armazena. Ali ele tem um saxofone, comprado clandestinamente de um caixeiro-viajante, que Ferrão sopra sem conseguir tirar nenhum acorde.

O porão é seu mundo interno, ou subterrâneo, onde estão suas dúvidas, desejos, fantasias, dores e perguntas. Ali ele vive fantasias, reencena frustrações, enquanto convive com um terrível segredo, que Maurício vai revelando aos poucos, como só sabem fazer os melhores ficcionistas. Dentro da casa, o que restou da família, depois que a maioria dos filhos foi viver a própria vida: a mulher, Joana, uma filha solteira, Isabel, com um filho aleijado, Dito, cujo pai ninguém conhece, e que trota de quatro pela casa e pela fazenda “feito um bicho, misturado a cavalos, vacas, galinhas e passarinhos”. Ganha destaque o silencioso cão Tarugo, “qual um Cérbero, a guardar há décadas portas que não devem ser abertas.”

“O que é ser feliz?”. É a grande pergunta que se fazem os personagens, que ainda esperam pela grande resposta. Maurício não procura, não é seu intento sugerir ao leitor nem um tipo de verdade, ele não busca explicações. Se elas existem, cabe unicamente ao mesmo leitor descobri-las, aos poucos, aos trancos, diante dos absurdos e dos abismos que se abrem diante dos cenários idílicos.

O escritor monta um jogo, um labirinto de claros e escuros, de sins e nãos, mais nãos do que sins, diga-se. Nada neste belo romance é mediano, morno, o estilo de Maurício transita dentro de paradoxos. Eles mais sugerem que afirmam.

RECURSOS LITERÁRIOS Maurício tem seus recursos literários, domina o seu ofício e os utiliza de forma contundente e clara, sem perder nunca uma certa leveza, uma fluidez e a inteligência. Maurício parte do desentendimento para montar o enredo do livro e coloca o leitor numa trilha feita de sombras. O escritor embaralha e “desexplica”, mas não à maneira do poeta Manoel de Barros, que privilegia o simples acima de tudo; a trama de Réstia de alho, as colunas que lhe dão suporte são feitas de volutas barrocas, de vertigens que envolvem o leitor numa teia de mil direções. A epígrafe do livro, de Guimarães Rosa, lança luzes sobre esse processo: “Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.”

Os poucos encontros e os inevitáveis e assombrosos desencontros são sempre toscos e mal-arranjados. Nenhuma peça se encaixa nesse jogo estranhamente belo, contudo. Joca Ferrão tinha “os olhos fracos e cansados”. O seu saxofone representa, talvez, com o seu formato único (as tais volutas barrocas), a própria estranheza da existência, que fascina e mete medo. Os fatos, através da memória, nunca se reordenam da maneira que queremos.

O silêncio, se isso é possível, é o maior e mais importante protagonista do livro. A trama oscila entre acordes dissonantes (mudos) de um saxofone. Maurício nos leva a um desfecho feito de mistérios, um desfecho surpreendente. O escritor parece sugerir que é preciso maestria para encontrarmos o equilíbrio quando lidamos com ingredientes poderosos e marcantes como a solidão, o medo, o desamparo que nos serve, que nos achincalha de forma nada sutil, e sempre desorienta. O coração humano é mais complexo e indecifrável que pensamos. Abrir as portas, abrir os porões deste “palácio”, desta Babel de labirintos, pode trazer consequências e suscitar mais perguntas que respostas.

*André di Bernardi é jornalista e poeta

Divulgação
(foto: Divulgação)
TRECHO DO LIVRO


“Joca olhou para o instrumento com a pouca luz que entrava por frestas das toras de madeiras que sustentavam o paio e formavam as paredes do porão. Pegou-o novamente nas mãos. Encantou-se com os botões, com o bocal, com a delicadeza das curvas. Alisou a peça como se fosse o corpo tenro de uma mulher, mesmo usando seus dedos de pele grossa e pouco delicada. Ele nunca tivera o sonho de possuir um objeto tão especial. (…) Sob a guarda do fiel Tarugo, protegido como sempre pela penumbra e pelo silêncio, Joca empunhava seu saxofone como se fosse uma arma e atirava para matar. Em cada raio de luz que entrava pelas frestas das toras que faziam as vezes de paredes, via um alemão e sobre ele todo seu ódio era descarregado. Em suas horas de solidão no porão com cheiro de alho, Joca matou muitos alemães em sua guerra particular.”

RÉSTIA DE ALHO
De Maurício Lara
Editora Quixote+Do
186 páginas
R$ 49,90

Lançamento: amanhã, às 11h, na livraria Quixote – Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, BH