Professor alemão compara líderes populistas da 1ª Guerra aos atuais: 'mesmos mecanismos de propaganda'

Cem anos após a assinatura do tratado que encerrou o primeiro grande conflito mundial, UFMG promove jornada que enfoca os horrores do confronto sob a ótica das artes

por Pedro Galvão 09/11/2018 07:00
Associated Illustration Agencies/O Cruzeiro/Arquivo EM
Soldados ingleses marcham em vila francesa destruída pela Primeira Guerra Mundial (foto: Associated Illustration Agencies/O Cruzeiro/Arquivo EM)

Às 11h de 11 de novembro de 1918, o marechal Ferdinand Foch, comandante da Tríplice Entente, e o representante político-civil alemão Matthias Erzberger assinavam o Armistício de Compiègne. O acordo encerrou a Primeira Guerra Mundial, que se estendia havia pouco mais de quatro anos. Para o historiador Eric Hobsbawm, terminava aí “o longo século 19”, dando lugar a uma remodelação política e a transformações culturais e sociais que marcariam o século seguinte.

Às vésperas de seu centenário, o fim do confronto multinacional que redefiniu fronteiras e impôs novos rumos à história mundial é objeto de estudiosos, sobretudo pelas lições que oferece à compreensão de problemas atuais. Na segunda e terça da próxima semana, o Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura (Negue) da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realiza sua terceira jornada, tendo por tema “O fim do século 19 cem anos depois”.

Um ciclo de 17 palestras reunirá pesquisadores e professores na abordagem de obras literárias ou de outros campos da arte que tematizam os horrores e transformações provocados pela “Grande Guerra”, cujo número de vítimas ultrapassou os 9 milhões, entre civis e militares. Marcada pela ebulição da tecnologia bélica, que trouxe inovações altamente letais, como metralhadoras, uso de aviões para bombardeios e tanques para avançar sobre as trincheiras – outra novidade estratégica de combate –, a guerra estilhaçou a sociedade europeia,  que vivia sua belle époque até 1914.

Com potências imperialistas superarmadas em tensão pela disputa de mercados, o atentado fatal contra o arquiduque Francisco Ferdinando, do Império Austro-Húngaro, em uma visita à Sérvia, foi o estopim para uma das maiores carnificinas da história moderna. Em efeito dominó, outras nações entraram no conflito, estabelecendo alianças. Vencedores, o Império Britânico, a França, os Estados Unidos e o Império Russo ficaram ao lado da Sérvia. Entre os derrotados, o Império Alemão e o Otomano, que haviam se juntado ao reino onde hoje estão Áustria e Hungria. Dos dois lados, monarquias que caíram após a guerra, dando origem a novos países, numa explosão de transformações que foram além daquelas observadas no mapa.

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A cidade francesa de Athie, destruída pelos ataques alemães (foto: ASSOCIATED ILLUSTRATION AGENCIES/O CRUZEIRO/ARQUIVO EM)


IMPACTO 

“Queremos mostrar nossas interpretações na literatura de guerra, mas também o impacto da Primeira Guerra Mundial sobre a sociedade e o início das repúblicas modernas. Com a Grande Guerra, várias monarquias desaparecem. O papel da mulher na sociedade mudou quando ela teve que substituir o homem nas fábricas, porque eles estavam em combate. Essas dimensões relevantes para entender a época contemporânea serão tratadas nas palestras”, afirma Volker Jaeckel, professor associado de língua alemã e literatura comparada da Faculdade de Letras da UFMG. Nascido na Alemanha, Jaeckel é coordenador do Negue, fundado há nove anos.

Nas artes, os efeitos da devastação puderam ser observados especialmente nas expressões visuais. “Até então, a arte tentava ser um fiel retrato da realidade ou do que o artista observava. Depois, com o Expressionismo, o artista começa a distorcer tudo aquilo. Picasso e Dalí pintavam a realidade como se fosse uma fotografia diferente, com novos traços. A impressão que a Primeira Guerra deixou foi de choque e horror, isso se refletia na pintura – não havia mais beleza, nem feições agradáveis, mas um retrato feio e abjeto da realidade”, exemplifica o especialista em literatura alemã.

O professor Marcos Hill, da Escola de Belas Artes, abordará especificamente esse tema em sua palestra na jornada. Obras de grandes romancistas, como a inglesa Virginia Woolf e o alemão Thomas Mann, também serão abordadas por palestrantes, assim como linguagens mais contemporâneas que estabelecem algum tipo de diálogo com o conflito, como o game Batlefield I e a versão cinematográfica de 2017 da Mulher Maravilha. 

Na política, a Primeira Guerra também foi decisiva para algumas das transformações mais significativas do  século 20. A Revolução Russa, um ano antes do fim da guerra, acabou com o czarismo e instalou o regime comunista no país. Os EUA abandonaram o isolacionismo e se consolidaram como a grande potência do capitalismo mundial, ao financiar a recuperação dos países europeus, por meio do empréstimo de grandes quantias. Já a Alemanha, última nação a resistir à Tríplice Entente, viu surgir um levante contra o absolutismo que terminou por depor o imperador Guilherme II e originou uma república – que duas décadas depois rasgaria os acordos de paz, previstos no Tratado de Versalhes, iniciando outra guerra.

Topical Press Agency/O Cruzeiro/Arquivo EM
Os tanques foram uma das inovações bélicas usadas no confronto. Neste registro, veículo britânico se move em vila francesa (foto: Topical Press Agency/O Cruzeiro/Arquivo EM)


HUMILHAÇÃO 

“Do ponto de vista alemão, é um tratado de paz vergonhoso, porque implicava muitas cláusulas humilhantes. Tiveram, por exemplo, que entregar navios de guerra, pagar pelos danos causados, perderam territórios, enquanto boa parte da Alemanha era ocupada por tropas francesas. Com isso, veio a ascensão do nazismo. O país queria alguém forte, que o libertasse dessas cláusulas, e Hitler prometia isso: a ‘Alemanha grande de novo’. Algo que não soa tão estranho nos dias atuais”, argumenta Jaeckel, que identifica as guerras como um dos temas principais da literatura no século 20.

Consequências diretas do fim da Primeira Guerra, o nazismo, o comunismo soviético e o imperialismo norte-americano continuam presentes em discursos políticos atuais, mesmo no Brasil, que não teve envolvimento direto no conflito. Com estudos e publicações sobre a literatura moderna de seu país, Jaeckel argumenta que “a literatura mostra que alguns fatores são atemporais”. Como exemplo disso, ele lembra de dois livros alemães. Um deles é Nada de novo no front, de 1928, escrito por Erich Maria Remarque. “Foi o primeiro livro antiguerra que houve e o mais vendido até hoje originalmente em língua alemã. É pioneiro ao falar do sofrimento nas trincheiras e tem seu lugar na história da literatura universal por acusar as atrocidades da guerra. Por isso, depois de tantos anos, tem a mesma atualidade ao acusar o crime contra o ser humano que é uma guerra”, diz.

Outro exemplo é o romance policial Kieler Morgenröte (Aurora em Kiel), de Kay Jacobs, lançado neste ano e ainda não traduzido para o português. A história aborda o início da Revolução Alemã, nos momentos finais da Primeira Guerra. “Na rebelião comandada pelos marinheiros na cidade de Kiel, soldados rasos se levantaram contra oficiais, arriscando a própria vida contra a ordem vigente e inciaram uma grande transformação. Hoje, são classificados como defensores da paz e de um governo democrático. Foi uma revolução que partiu de um navio e, em cinco dias, se espalhou por toda a Alemanha”, afirma o professor, que vai palestrar sobre outras representações desse episódio na literatura, no cinema e nas artes visuais, dentro da 3ª Jornada do Negue.

Instado a avaliar se, depois de 100 anos, a humanidade absorveu lições dos fatores que ocasionaram a Primeira Guerra e os desdobramentos de seu encerramento, cujo resultado foi outra guerra, Volker Jaeckel evita responder diretamente: “É uma pergunta muita boa, que deixo para os leitores. Não me atrevo a respondê-la. Infelizmente, existem os mesmos mecanismos de má interpretação da história para quem quer ter seguidores e ser eleito, como Hitler fez. Os mecanismos de propaganda continuam iguais. Mas supõe-se que hoje existam mecanismos para evitar chegar numa catástrofe bélica dessas dimensões. O discurso populista ainda vinga em muitos países atualmente, na Europa e nas Américas. Um exemplo preocupante é que se busca um culpado para os problemas, que sempre é o mais fraco, o estrangeiro, o refugiado, o que vem de fora, o que vive à margem. Isso mobiliza mais as pessoas do que a proposição de um programa econômico ou financeiro. Donald Trump, presidente norte-americano, fala que teve progresso econômico em seu governo, mas o discurso sobre imigrantes convence mais. Ou seja, a preocupação é a mesma que há 100 anos”.


1918: O FIM DO SÉCULO 19 CEM ANOS DEPOIS
3ª Jornada do Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura da Faculdade de Letras da UFMG. Segunda-feira (12), das 14h às 21h, e terça-feira (13), das 10h às 21h30, na Faculdade de Letras da UFMG (Avenida Antônio Carlos, 6.627, Pampulha). A programação detalhada por horário e o link para inscrições nas palestras podem ser acessados em www.letras.ufmg.br/nucleos/negue/.