Obras com mais de mil páginas conquistam leitores na era do Twitter

Publicações ganham lugar nas livrarias como resultado do esforço de seus autores e editores, que garantem: há leitores dispostos a abraçar volumes caudalosos

por Walter Felix 14/09/2018 14:01

Ilustração Janey Costa
(foto: Ilustração Janey Costa)
A interatividade e a velocidade características do ciberespaço impactaram diretamente os hábitos de leitura. Em um contexto em que predominam textos curtos e uma agilidade atroz na absorção de conteúdos, torna-se cada vez mais insólita a experiência de se embarcar em uma obra literária longa e complexa. Nem todas as publicações lançadas nestes tempos, contudo, obedecem à máxima de que os leitores contemporâneos consomem apenas histórias curtas e fugazes. Continuam chegando ao mercado livros extensos, com grande número de páginas – o que não implica, necessariamente, sua impopularidade.

Uma posição paradoxal, neste contexto, é ocupada pelos booktubers, que criam vídeos para a internet a partir de obras literárias, entre curiosidades, críticas e análises sobre as publicações. O YouTube se mostrou uma plataforma eficaz para leitores ávidos em compartilhar impressões sobre suas últimas leituras, o que – propositalmente ou não – acaba por divulgar tal hábito. A plataforma, ao mesmo tempo, abriga conteúdos dispersivos e efêmeros, rivais diretos dos hábitos culturais contemplativos no cotidiano dos internautas.

“Sendo sincera, vejo a internet mais como uma vilã do que como uma aliada. É mais um elemento para competir pela atenção das pessoas e distraí-las”, afirma a jornalista Isabella Lubrano, de 29 anos, responsável pelo canal Ler antes de morrer, no YouTube. Sua meta é ler 1.001 livros tidos como essenciais pelos críticos e comentá-los na plataforma. Desde 2014, quando entrou no ar, o projeto soma mais de 8 milhões de visualizações. “Hoje, temos internet no bolso e, naqueles momentos livres, de ócio – na fila do banco, sentado no ônibus e em outros intervalos do dia a dia –, estamos ocupados com o WhatsApp ou o Facebook”, observa.

Em vez de acirrar ainda mais a rivalidade entre as mídias, Isabella decidiu usar as formas digitais de comunicação a favor da literatura. “A internet pode virar aliada quando conseguimos reverter a impressão ruim que se tem do hábito de leitura, algo que vem desde a escola. O jovem tem acesso a esse conteúdo de forma exigente e avaliativa, o que é, obviamente, muito importante, mas isso torna a experiência mais cansativa e menos prazerosa”, opina.

“Leitura é um hábito solitário, a maioria precisa de silêncio para conseguir se concentrar. Mas, no Brasil, temos uma cultura de interação. O brasileiro, em geral, gosta de festa, de conversar e reunir família e amigos. Também por isso, nossa cultura é riquíssima em contação de histórias pela oralidade”, avalia a paulistana, que cita a tradição dos cordéis e das radionovelas – que evoluíram para as telenovelas.

Na opinião de Isabella, o tamanho de uma publicação é elemento crucial na decisão do leitor em lê-la. Em especial, se a leitura não for um costume incorporado à rotina. “É um hábito como a ginástica. Se você não tem costume de ir à academia, fará cinco minutos de esteira e já estará cansado. Com um livro, se você ainda não adquiriu concentração, em cinco minutos você se distrai. É preciso cultivar o hábito para criar uma musculatura”, compara.

“Nesta sociedade em que se lê tão pouco, um livro grande assusta. As pessoas acham que não vão dar conta e nem se interessam. Olham não só com receio, mas com desprezo e deferência, por parecer algo relacionado à arrogância. Quanto maior o livro, maiores serão esses sentimentos”, diz Isabella. Para ela, é preciso começar com livros “magrinhos” para, só depois, investir nos “calhamaços”.

Não à toa, seus dois vídeos mais assistidos – um com 290 mil visualizações e outro com 174 mil – dão dicas de como ler mais e de livros para desenvolver a paixão pela literatura. “Tento passar essa noção de que um leitor não nasce pronto. Ler é importante, sim, mas não há nada de errado em não conseguir ler, de cara, grandes obras, assim como não há como correr grandes maratonas sem treino.”

 

 

Ela nota que uma parcela expressiva dos jovens, na atualidade, se lançam como leitores justamente com sagas que primam pelo número extenso de páginas. É o caso dos volumes já lançados de As crônicas de gelo e fogo, do escritor norte-americano George R. R. Martin, que deu origem à série de TV Game of thrones. Outras histórias de ação e aventura, como Jogos vorazes, de Suzanne Collins, se mostram populares entre os jovens, em geral considerados avessos às grandes leituras.

A própria booktuber viu nascer seu fascínio pelos livros com publicações que se encaixam nessa seara: os sete volumes da franquia Harry Potter, escritos pela britânica J.K. Rowling. “Não à toa, os primeiros livros são curtos e vão ficando grandes. No início, é preciso fisgar o leitor ainda criança. Os livros ficam maiores e mais complexos porque os leitores vão crescendo e adquirindo a musculatura da qual falei.”

Além de ser capazes, por si só, de arrebatar a audiência, tais livros contam com o forte apoio de divulgação com as adaptações para cinema e TV – mídias alheias e muitas vezes concorrentes à literatura, mas que podem convergir e abarcar umas às outras. “Uso meu canal para inserir a literatura no universo da cultura pop, junto ao cinema, à música e ao entretenimento. Ao traçar um livro como objeto pop, tento promover o interesse por ele. Tenho conseguido atrair visualizações mesmo para os clássicos brasileiros, mostrando como foram importantes para a nossa história e como dialogam com o momento de hoje”, afirma a booktuber.

MEGALOMANIA Em seu novo livro, Tupinilândia, o gaúcho Samir Machado de Machado conta a história de um parque, erguido em plena selva amazônica na década de 1980, com a proposta de evocar elementos da cultura brasileira. Prestes a ser inaugurada, a Disneylândia tupiniquim está na mira de militares que, naqueles anos, tentavam se manter no poder, num contexto de abertura política no país. A narrativa faz um salto até os dias atuais, em que um arqueólogo descobre na localidade a existência de uma sociedade que parou naquele tempo, convivendo ainda com o militarismo e os efeitos da Guerra Fria.

Homossexualidade, conservadorismo e temas pertinentes à época em que a trama transcorre – como a violência dos órgãos de repressão e o avanço do vírus HIV – estão impressos nas páginas de Tupinilândia. “Esta história parte do meu entendimento de que esse revival dos anos 1980 foi longe demais. A nostalgia parece fazer esquecer que aquela não foi uma boa década para o Brasil, política, econômica e socialmente”, diz o escritor.

Tupinilândia chega às livrarias com 454 páginas. O autor afirma que seu processo criativo não é refém de um anseio por popularidade, e o tamanho da obra nunca foi visto por ele como um possível empecilho na relação com seu público. “Sigo o tamanho que a história precisa ter para ser contada. Com base na minha experiência e no que conheço do trabalho de outros escritores brasileiros, não existe nenhuma pressão por parte das editoras para determinar o tamanho dos livros com base no mercado.”

“Meus livros têm certa tendência à megalomania”, diz Samir, que cita seu lançamento anterior, Homens elegantes, de 2016. Em 576 páginas, a trama capa e espada, ambientada em 1760, narra a ida de um soldado brasileiro à Europa para investigar o contrabando de livros eróticos. “Minhas histórias se encaixam em uma lógica de romances históricos e de aventura, que geralmente implicam livros grandes. Tupinilândia é outra história que eu não conseguiria contar em 100 páginas”, diz ele. Sua inspiração veio de epopeias cinematográficas que o fascinaram na infância, em especial as sagas Indiana Jones e Jurassic Park, criadas por Steven Spielberg.

O autor afirma que seu modus operandi é insubordinado aos atuais anseios da audiência. A agilidade narrativa – elemento muitas vezes tido como indispensável para o êxito das ficções atuais – está presente em Tupinilândia como marca do autor e do estilo a que se dedica. Não há uma preocupação de Samir em inscrever seu novo livro no hall dos acelerados enredos contemporâneos. “Acredito que nenhum autor escreva, efetivamente, pensando como será a reação do leitor. Escrever um livro é como contar uma piada agora e só saber se vão rir daqui a dois anos. Crio aquilo que eu mesmo, como leitor, gostaria de ler. Por isso escrevo aventuras, sem a necessidade de uma preocupação formal com o ritmo.”

Enquanto escrevia Tupinilândia, Samir traduziu, também para a Editora Todavia, O mundo perdido, de Arthur Conan Doyle. “Esse livro foi escrito na década de 1910, mas traz uma agilidade e um ritmo totalmente contemporâneos. Essa preocupação com agilidade é natural do tipo de história que escrevo, em que ação, suspense e velocidade já fazem parte da trama.”

Além do árduo trabalho de se contar uma história tão extensa, este é um romance histórico, o que requer maior cuidado e atenção aos detalhes em nome da verossimilhança. Uma atividade tão complexa quanto prazerosa, garante Samir. O tamanho da publicação, para ele, é proporcional à satisfação do escritor e do leitor no processo de iniciar, embarcar e finalizar uma obra de profundidade. “Como leitor, me agrada quando o autor se aprofunda em um personagem ou no universo que propôs. É uma questão de necessidade. Em Tupinilândia, o protagonista não é uma pessoa, mas uma cidade. Precisei de um bom número de páginas para inserir o leitor nesta cidade e para fazê-lo se sentir imerso nela.”

DOMAR
Trabalho árduo para um escritor significa, também, trabalho árduo para o editor. No caso de Tupinilândia, a tarefa coube a André Conti. “Recebo o manuscrito, leio e devolvo-o com apontamentos e sugestões. É claro que o tamanho maior tornou o trabalho mais braçal, porque foi preciso domar dezenas de acontecimentos e centenas de referências. O Samir tem uma imaginação forte e ágil. O que fiz foi tentar diminuir, condensar algumas passagens e entender qual era o foco da história e centrar nele”, afirma o editor.

“Os livros têm o tamanho que precisam ter. Grandes romances, abrangentes, precisam desse fôlego e, de certa forma, é também o que os torna grandes livros, no sentido qualitativo”, afirma Conti. Na opinião dele, em dadas situações, o limitado número de páginas pode depor contra uma obra. “Vamos publicar, em breve, uma biografia do Jorge Amado (escrita pela jornalista Joselia Aguiar). Será um livro bem extenso, com aproximadamente 500 páginas. Ele é um personagem deste tamanho. O próprio leitor, se visse uma biografia do Jorge Amado em 150 páginas, acharia, com razão, insuficiente em algum ponto.”

Conti observa que, para as editoras, livros grandes requerem grandes investimentos. “Uma publicação de 100 páginas é mais fácil, comercialmente, que uma de 1.000. Caso o livro tenha sido escrito em outro idioma, o tradutor receberá por lauda de trabalho. As editoras têm, então, uma preocupação econômica, do quanto se aposta naquele livro e a sua possibilidade de venda.” Também na relação com a audiência, o principal obstáculo enfrentado por essas publicações, na opinião do editor, é financeiro. “O leitor tem fôlego para livros que o envolvam em uma jornada mais longa. Se a história chega ao leitor e captura sua imaginação, o tamanho é menos um impeditivo que o próprio preço”, aponta.

Cinco perguntas para...

Marcelo Ferroni
Publisher dos selos Alfaguara, Objetiva e Suma, do grupo Companhia das Letras


Como é a relação do mercado com os livros mais longos? Há uma resistência do leitor e uma consequente resistência das editoras em lançar essas obras?
Acho que não. Não há uma resistência do leitor se o livro for bom. Na Companhia das Letras, levamos em conta apenas a qualidade do livro e se o seu tamanho é necessário para desenvolver a narrativa. A questão, a meu ver, é que não é simples escrever um romance de 600 páginas ou mais. Eles não são tão frequentes, então podemos achar que estão em extinção. Mas há ótimos exemplos recentes de sucesso, como o 2666, do Roberto Bolaño; Pornopopeia, de Reinaldo Moraes; a trilogia 1Q84, de Haruki Murakami; e a série napolitana da Elena Ferrante. E isso só na parte da literatura mais tradicional. Em outros gêneros, como a fantasia, o caso é o contrário: o leitor espera livros maiores.

Como é definido o número de páginas de uma publicação? O fator obedece aos critérios editorais ou é privilegiada a necessidade do escritor em contar sua história?
O autor tem total liberdade; o número de páginas é definido em função da sua narrativa. Alguns livros, como os do Reinaldo Moraes, exigem uma narrativa mais longa. Em novembro, vamos publicar o novo romance dele, Maior que o mundo, de 450 páginas, e que será o primeiro de uma trilogia. Outros livros, como o que vamos lançar em outubro, do Emilio Fraia, Sebastopol, são estruturados em narrativas curtas, compactas. Depende muito da voz do escritor e do que ele pretende com o livro em questão.

É possível afirmar que os livros estão ficando mais curtos? A velocidade em assimilar informações, na contemporaneidade, impactou na produção no mercado editorial?
Não sei se dá para afirmar isso. Sempre tivemos muitos livros curtos na literatura e, de tempos em tempos, os enormes. Inclusive, se pensarmos nos livros de outros gêneros, como terror, fantasia e ficção científica, vemos justamente o efeito contrário. Os livros são enormes. O exemplo máximo disso é a série do George R.R. Martin, Crônicas de gelo e fogo, que tem cinco volumes e deve ganhar mais dois. Em média, são 800 a 1.000 páginas por volume, e seu sucesso é estrondoso. Ou seja, se o livro engaja o leitor, o tamanho passa a fazer pouca diferença. Temos também casos brasileiros de muito sucesso nessa área, como o Eduardo Spohr.

Você sente que, no atual contexto do mercado literário, os escritores têm uma tendência a escrever livros mais concisos, ou mesmo com narrativas mais ágeis?
O estilo narrativo certamente mudou, você não pode escrever hoje como se escrevia no século 19. As descrições mudaram, o ritmo acelerou. Os livros têm de concorrer com inúmeros outros estímulos externos (filmes, séries, internet etc.) e, de certa forma, há uma troca de linguagem entre um meio e outro. Mas isso não obriga, necessariamente, o livro a ser curto. As séries de TV, por exemplo, são enormes e usam muito da estrutura narrativa literária para contar suas histórias. Elas criam arcos narrativos inteiros para os seus personagens e precisam, também, de uma estrutura mais longa, como um livro.

A internet é, por vezes, apontada como inimiga da literatura. Como avalia essa relação? As novas mídias e o ciberespaço também devem ser vistos como aliados?
As mídias sociais podem ter criado um desafio para a literatura realista, contemporânea. É uma questão a ser discutida. Por outro lado, têm revelado autores de primeira categoria, que talvez não tivessem sido encontrados e publicados de outra forma. Cito o exemplo de um autor brasileiro sensacional, o Jessé Andarilho, que começou a carreira escrevendo no trem, num celular. Mas há outros, muitos outros.

 

Confira exemplos recentes de livros volumosos editados no Brasil

 

 

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. De Paul Auster

. Tradução: Rubens Figueiredo

. Companhia das Letras

. 816 páginas

. Preços sugeridos: R$ 89,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)

 

Aclamado pela crítica norte-americana, o novo livro de Paul Auster mostra como escolhas, relações e condições pessoais podem mudar os rumos de uma vida. Em mais de 800 páginas, o autor cria quatro possibilidades de destino, totalmente diferentes, para o mesmo personagem. 

 

 

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BEETHOVEN, ANGÚSTIA E TRIUNFO

. De Jan Swafford

. Tradução: Laura Folgueira

. Amarilys

. 1.056 páginas

. Preço sugerido: R$ 189

 

Biografia apresenta um detalhado retrato da vida de Ludwig van Beethoven. Escrita pelo especialista Jan Swafford, a publicação traz também análises do legado deixado pelo compositor alemão.

 

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DOSTOIÉVSKI: UM ESCRITOR EM SEU TEMPO

. De Joseph Frank

. Tradução: Pedro Maia Soares

. Companhia das Letras

. 1.184 páginas

. Preços sugeridos: R$ 159,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)

 

Edição especial condensa a extensa pesquisa que resultou nos cinco volumes que resgataram o legado do filósofo Fiódor Dostoiévski. O biógrafo Joseph Frank aborda a história cultural da Rússia ao reconstituir a vida e a obra do escritor.

 

 

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NIX

. De Nathan Hill

. Tradução: José Francisco Botelho

. Editora Intrínseca

. 672 páginas

. Preços sugeridos: R$ 59,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)

 

Sucesso de crítica em 2016 e lançado no Brasil em abril deste ano, o romance de estreia de Nathan Hill acompanha o reencontro de um escritor e sua mãe, que o abandonou na infância. O fato o faz investigar o passado de sua família, que perpassa a Segunda Guerra Mundial, o movimento hippie e outros momentos históricos. 

 

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O ROMANCE LUMINOSO

. De Mario Levrero

. Tradução: Antônio Xerxenesky

. Companhia das Letras

. 648 páginas

. Preços sugeridos: R$ 84,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)

 

Iniciada em 1984 e lançada apenas em 2005 (um ano após a morte do autor), a publicação ganhou nova edição no Brasil em abril. Com tom autobiográfico, a história mostra o cotidiano de um sexagenário tomado por fobias e superstições.

 

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TUPINILÂNDIA

. De Samir Machado de Machado

. Editora Todavia

. 454 páginas

. Preços sugeridos: R$ 69,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)

 

Nos anos 1980, um parque de diversões é construído na Amazônia para celebrar a volta da democracia, mas termina sendo invadido por militares. Vinte anos mais tarde, antes de o local ser alagado para a construção da usina de Belo Monte, um arqueólogo mapeia o local e desvenda um segredo.