Manifesto para abolir as prisões defende que modelo de punição baseado no cárcere é incapaz de cumprir as funções

Livro de Ricardo Genelhú e Sebastian Scheerer mostra ainda que a extinção desse sistema é possível

por Pablo Pires Fernandes 02/02/2018 10:06
José Patrício/Reuter
Trabalhador caminha diante das ruínas do Complexo do Carandiru, local onde ocorreu o massacre policial que deixou 111 presos mortos (foto: José Patrício/Reuter)
Colocar em uma prisão Eduardo Cunha,  Palocci, Sérgio Cabral e Marcelo Odebrecht pode satisfazer a opinião pública. Para Ricardo Genelhú, porém, tudo é um jogo, uma prática de efeito simbólico. “A questão é que é só uma cortina de fumaça”, afirma o coautor de Manifesto para abolir as prisões. O livro demonstra que os princípios e práticas de encarceramento estão falidos e defende a total transformação da lógica de penalização dos indivíduos.

“Se você for prender todos os políticos corruptos, terá que prender muitos políticos corruptos e não há interesse nesse sentido. Se esbarrar em alguém próximo do sistema judiciário, o processo será barrado.” A afirmação não é mera retórica. Genelhú tem todas as credenciais para sustentar seu argumento: dois pós-doutorados – em política criminal e criminologia –, mestre e doutor em direito penal e alguns livros publicados.
Seu livro-manifesto, escrito em parceria com Sebastian Scheerer, professor emérito de criminologia da Universidade de Hamburgo (Alemanha), apresenta o debate histórico a respeito do tema de maneira didática e atual. Para ele, o combate à corrupção no Brasil é apenas parte de um sistema bem mais amplo e perverso. “O Estado sempre elege um bode expiatório, sempre há um crime da moda. Já foi a bruxaria durante a Inquisição, já foi o crime político na Revolução Francesa, o crime contra a propriedade na Era Medieval, as drogas para justificar guerras... Agora, a corrupção é a bola da vez.”

As prisões nem sempre existiram e a privação da liberdade não representava uma forma de castigo, explica Genelhú, era apenas uma passagem temporária até a efetivação da real punição. “Serviam para guardar a pessoa para que ela não fugisse e pudesse ser enforcada, queimada, jogada aos leões etc., era uma custódia para a pena corporal.” O professor relata que, no século 16, percebeu-se que as prisões, que ocupavam os lugares dos mosteiros, poderiam ser usadas para ocupar uma mão de obra inútil – mendigos, camponeses desempregados e desordeiros. Somente no fim do século 18 percebeu-se  que a prisão poderia ser usada exclusivamente como forma de punição.

Desde então, formou-se a concepção de que as prisões são necessárias para o bom funcionamento da sociedade e a segregação é a maneira adequada de punição dos que violam a lei. Nas décadas de 1960 e 1970, porém, este sistema passou a ser alvo de críticas, dando origem à vertente teórica chamada criminologia crítica, que passou a relativizar os princípios jurídicos de punição, colocando em evidência fatores de raça, gênero e condição social.

Esse movimento de reflexão sobre as bases da lógica penal abriu caminho para que sociólogos e criminologistas, principalmente europeus, começassem a defender a abolição das prisões ao constatar que seus efeitos eram extremamente negativos. Genelhú resume as bases da proposta abolicionista: “Eles perceberam que as prisões têm dois efeitos: o neutro e o negativo. E o segundo efeito é o negativo, que, além de não funcionar, as prisões fabricam novos criminosos”.

No direito penal, o debate sobre a finalidade da pena é amplo, com variações sobre os princípios que justificariam que o Estado deve punir quem infringe as normas. As teorias relativas a respeito da finalidade da pena são divididas em positiva e negativa, ambas com princípios preventivos. Em termos gerais, a primeira pressupõe que o Estado e o ordenamento jurídico devem punir quem viola este sistema e serve para criar uma ideia de confiança na inviolabilidade da própria estrutura estatal e jurídica. A prevenção geral negativa parte do princípio de uma ameaça de punição, que frearia a prática criminosa por meio do medo de sofrer alguma penalidade.

No entanto, o criminologista explica que essas teorias têm sido questionadas. “Não dá para garantir que a prisão ameaça alguém. Essa intimidação, chamada coação psicológica, não pode ser provada. Várias pessoas foram enforcadas, esquartejadas ou presas e os crimes continuaram.” Para Genelhú, pesquisas mais recentes constatam que a coação não funciona e, inclusive, “segundo alguns psicólogos, ela até estimularia a prática de crimes”. Ele esclarece que esta tese sustentada por alguns teóricos se sustenta em princípios judaico-cristãos que fundamentaram a civilização ocidental. “A pessoa, em tese, nasceria com sentimento de culpa, porque ela é má, e por ser má, ela diz para si mesma ‘como não consigo me autopunir, faço com que alguém me puna para me eximir desta culpa, o que teria um efeito de redenção.”

O pesquisador diz que os princípios de prevenção não são estanques. “Se a prisão não tem o efeito de intimidação, outros gatilhos funcionam. Por exemplo, a pessoa não comete um crime não porque não quer ser presa, mas para não perder a namorada, o emprego, ficar longe dos filhos etc. Há outros freios sociais e morais que fazem com que as pessoas se segurem e não pratiquem crime. Daí se conclui que a prisão não serve para nada.”

Outro aspecto que fornece bons e concretos argumentos para a abolição das prisões é a estigmatização dos detentos. O autor do livro acredita que a noção de uma suposta reabilitação, que fundamenta a justificativa do Estado para manter o sistema carcerário, é equivocada e simplesmente não funciona. A prisão fabrica culpados, a chance de alguém entrar por causa de um roubo e sair de lá matando e estuprando existe. Porque a prisão destrói a subjetividade do encarcerado através de cerimônias de degradação – ser obrigado a tomar banho nu na frente dos outros, os uniformes, a absoluta padronização de condutas.”

Para Genelhú, a relação entre o sistema prisional e o crime é inerente. “Não é a existência do crime que justifica a prisão, mas a prisão que justifica a existência do crime. Quanto menos prisões você tem, menos crimes serão cometidos”, argumenta. Ele vê a prisão como um negócio que se autoalimenta e continua produzindo criminosos. “Quando se prende uma pessoa e a insere em um sistema totalmente degradante, a tendência é que essa pessoa piore sob a ótica criminal. Como vou educar alguém para a sociedade se eu a privo da sociedade? Não é possível. A prisão é feita para não funcionar, porque se funcionar, ninguém mais vai pra lá.”

A atribuição de poder ao Estado para punir é um princípio genérico que pressupõe, em tese, o funcionamento abstrato. No entanto, como adverte o pesquisador, “este ente abstrato funciona através de pessoas”.   Para ele, “não dá para dizer que existem pessoas más que ficam manipulando o sistema punitivo, mas vários setores atuando”. Assim, a máquina estatal criou todo um aparato – agentes penitenciários, polícias, defensorias, promotorias, tribunais etc. – de legitimação para penalizar os indivíduos, que, para Genelhú, é usado de forma seletiva para perseguir determinadas classes.

“O Estado se vale da prisão para poder controlar os desobedientes e limpar os espaços sociais (higiene social), impedir a mobilidade social da classe mais baixa para a classe mais alta. Geralmente, a prisão é usada para manter quem está no poder.” O pesquisador se apoia em estatísticas e pesquisas, mas não é necessário se debruçar sobre relatórios e números quando casos do tipo Amarildo ocorrem com tamanha frequência. Genelhú afirma que o sistema punitivo e prisional está intimamente relacionado à desigualdade social. “A lógica prisional genérica é servir como controle social dos desprovidos de renda. As classes dominantes, os chamados invulneráveis, usam o poder punitivo como armamento estatal a seu favor. A prisão é usada como braço armado dessa classe dominante.”

A longa constatação da falência do sistema prisional ocupa quase todo o volume do Manifesto para abolir as prisões. Ao final, os autores se dedicam a apresentar alternativas ao modelo vigente e apontam para uma total reformulação do sistema jurídico-penal. Genelhú explica que a estratégia tem como fundamento jurídico “eliminar toda espécie de crime (ab-rogar), revogar todos os tipos penais (todos os tipos crimes)”. Ele próprio pergunta e responde à questão que qualquer um se coloca. “O que fazer com as pessoas que praticam crimes? Teria que mandá-las para outras áreas do direito, mas não o direito penal com a prisão.” Ele exemplifica dizendo que um crime contra o meio ambiente deveria ser tratado pelo direito ambiental, um crime financeiro pelo direito tributário, e assim por diante. E conclui sua análise com um argumento forte que é, ao mesmo tempo, uma triste constatação: “Tem 250 anos que a prisão tem essa função de castigo e não está funcionando, os presos e os crimes só aumentam.”
Dado Galdieri/AP
Implosão dos pavilhões do Complexo do Carandiru, em 2002. Fechamento do presídio deu início a uma série de construções de panitenciárias no interior do estado de São Paulo (foto: Dado Galdieri/AP)

Como vou educar alguém para a sociedade se eu a privo da sociedade? Não é possível. A prisão é feita para não funcionar, porque se funcionar, ninguém mais vai pra lá

Ricardo Genelhú, criminologista

MANIFESTO PARA ABOLIR AS PRISÕES
>> De Ricardo Genelhú e Sebastian Scheerer
>> Editora Revan
>> 352 páginas
>> R$ 52