Milton Hatoum lança primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio

Obra e inicia o que poderá ser a grande reflexão literária brasileira sobre a ditadura

ADRIANA VICHI/DIVULGAÇÃO
Milton Hatoum faz um retrato da vida em Brasília no período de 1968 a 1972 por meio das memórias do protagonista Martim, que viveu na capital federal nesse período, antes de se instalar em Paris (foto: ADRIANA VICHI/DIVULGAÇÃO)
O romance A noite da espera coloca Milton Hatoum no grupo dos escritores que enfrentam o desafio de representar os traumas históricos. No livro, que é a primeira parte da trilogia O lugar mais sombrio, o autor tenta capturar as feridas da memória deixadas pela ditadura militar (1964-1985). Até agora, Hatoum foi lido como narrador do espaço amazônico, das relações familiares e da imigração árabe. O que se percebe com o novo trabalho é a ampliação definitiva do tempo e do espaço em sua obra.

A ditadura já aparecia nos romances Dois irmãos (2000), Cinzas do norte (2005) e no conto Bárbara no inverno, publicado no livro A cidade ilhada (2009). Esse conto narra a história de um casal exilado em Paris, tendo o personagem central Lázaro. Tanto o exílio como um personagem chamado Lázaro aparecem em A noite da espera (serão as mesmas pessoas?). O narrador desta vez é o jovem Martim, que vive na capital francesa em 1977 e reúne anotações, cartas e diários dos tempos que viveu em Brasília (de 1968 a 1972).

Martim se muda para a capital federal após a separação dos pais. Um dos eixos narrativos é a tensão familiar entre o narrador e seu pai, Rodolfo, que é alto funcionário da burocracia e encarna o autoritarismo da época. A mãe (Lina) fica em São Paulo e manda cartas que compõem parte do quebra-cabeça do livro. O romance é um mergulho sentimental pela capital. Lugares que desapareceram, espaços engolidos pelos “progressos”. Martim e Dinah passam por sua antiga escola e só enxergam ruínas – a ditadura construindo pela destruição.

A vida dos personagens gira em torno de um coletivo cultural. Jovens de várias classes sociais de Brasília fazem a revista Tribo, traduzem autores estrangeiros, encenam tragédias gregas no teatro. É até possível construir um mapa geográfico de locais da cidade citados por Hatoum, a exemplo do que fez Franco Moretti com romances europeus do século 19.

A atmosfera de erotismo, política e cultura aproxima o livro de Hatoum do clássico A educação sentimental (1869), de Gustave Flaubert. Num trecho-chave, Martim está num quarto de hotel em Goiânia à espera de sua mãe (será a “espera” do título?) e começa a delirar com a senhora Arnoux, a eterna paixão do protagonista do livro flaubertiano (Frédéric Moreau).

Flaubert escreveu um dos maiores romances de todos os tempos, a partir da recriação da Paris revolucionária de 1848 e seus traumas. Relacionou indivíduos e fracassos coletivos das revoltas parisienses, criando o “romance da desilusão”, segundo Georg Lukács. Desilusão flaubertiana que já estava bem presente em Cinzas do norte.

Além dos jovens da Tribo, Hatoum criou duas figuras memoráveis. A primeira é o embaixador Faisão, que se torna a voz lúcida e sombria do livro. Ele representa a dissolução do sujeito no estado de exceção e a alegoria da cultura que é transformada em barbárie. A segunda é a “baronesa” Áurea, alusão à “marechala” Rosanette de Flaubert. É em seu apartamento, ao lado da Igrejinha de Brasília, que se reúnem o alto e o baixo da vida na capital. Todos circulam por esse espaço onde se pode fugir do clima de “respiração artificial” da época.

A trilogia de Hatoum poderá ser a grande obra de reflexão, com fôlego narrativo e atraente ao público, que tanto se esperava na literatura brasileira contemporânea. Não se trata mais de denunciar violências da ditadura militar, mas sim de refletir sobre o que restou dos tempos sombrios e o que não se consegue sepultar de vez.

*Enio Vieira é mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).


TRECHOS
Superquadra 308 Sul, Brasília, março, 1972


Áurea me levou até a janela da sala, de onde se podia ver um trecho do Eixo Rodoviário e do cerrado; lá embaixo, a poucos metros da janela, os pássaros e as estrelas azuis e brancas do belo painel de azulejos da Igrejinha, e à esquerda, o extenso gramado que termina na Escola Parque.

Domingo, 22 de março de 1970

Sentei numa poltrona do saguão, abri o livro de Flaubert e comecei a ler a passagem em que Frédéric e Mme Arnoux se encontrariam às três da tarde num apartamento em Paris, o primeiro rendez-vous amoroso, verdadeiro e clandestino. Frédéric sonhava com esse encontro, e eu com minha mãe; eram três horas da tarde no romance de Flaubert no hotel em Goiânia, Mme Arnoux e minha mãe não apareciam. Pulava frases do romance, voltava ao início do parágrafo, minha vista turva só enxergava o relógio na parede, o ponteiro preto e fino dos segundos movia-se com lentidão no círculo, minha ânsia crescia e retardava os segundos e minutos, melhor esquecer o relógio, fechar o livro e sair do hotel.

A DITADURA nas telas e nos livros

Para ler
Não falei (2004), de Beatriz Bracher
O punho e a renda (2010), de Edgard Telles Ribeiro
A resistência (2015), de Julian Fuks
Noturno do Chile (2000), de Roberto Bolaño
Duas vezes junho (2002), de Martín Kohan

Para ver
Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat
O que é isso, companheiro? (1997), de Bruno Barreto
Ação entre amigos (1998), de Beto Brant
Quase dois irmãos (2004), de Lúcia Murat  
Corpo (2007), de Rubens Rewald


A noite da espera

>> De Milton Hatoum
>> Companhia das Letras
>> 216 págs.
>> R$ 39,90