E tudo pirilampeou no escurão das incertezas

Eduardo Murta



Foi uma sensação de estranhamento quando ela cruzou a porta com aquele ar de quem carregava estrelas cadentes nos olhos. E o vestido num tom incomum para aquelas paragens em que o monocrático recatado reinava absoluto. Levava cores que pareciam um coquetel de bandeiras ao vento. Ele se recompôs, a não deixar transparecer que se desconcertara.

Pigarreou duas vezes, que era forma de dar solenidade à ocasião. Ajeitou-se à cadeira, enquadrou o guarda-pó branco e, sem desviar as miradas das dela, entabulou a frase comum a todos seus pacientes: – Com a graça de Deus, em que posso ajudá-la? Ela assentou a mão ao lado esquerdo do peito. Arfava. E o contorno daqueles seios emoldurados que vira despretensiosamente... ah, sim, haveriam de ser coisa do demônio.



– Vivo de incertezas, doutor. Sussurrou, deu uma pausa. – Em busca sei lá do quê, e as palpitações não me cessam cá por dentro. Emendou e tossiu seco, no que o olhar brilhou como saltassem pirilampos na madrugada dele. – Por vezes, esse palpitar me vem como fosse um galope no ressequido da mata, um sem freio na galhada de espinhos. A simbologia e o linguajar o encheram de bom assombro e surpresa. Quem haveria de ser aquela mulher saindo assim do nada, imaginando que fosse só dela um mal de que padecia por certo toda a humanidade? – ele, inclusive.

Pediu que assentasse à beira da maca, esticou o estetoscópio – era hábito estilingue que cultivava – e tentou pensar tão somente em fórmulas químicas no momento em que ela desabotoava os botões numa naturalidade menina. Não a conhecia da vila e resolveu perguntar de que comunidade viera. – De nenhuma. Sou desses sertões sem endereço por aí. Como assim? Foi o sorriso que a denunciou, com a peça em ouro delicadamente visível à direita da dentição. Não, não lhe roubava nada do charme, com aqueles cabelos divididos entre o coque bem comportado e o resvalo sensual ao meio das costas.

Então, uma cigana... Ele franziu o cenho. Preferiu não usar a palavra, que naqueles perdidos carregava um quê de coisa malsã, embora, no fundo, sentisse o avesso de qualquer incômodo. Ao examiná-la, o coração ia num compasso sem pressa. O dele, entre trôpego e ligeiro, é que sugeria uma estranha ansiedade, como esperasse por aquele instante fazia tempos. Puxou-se para o centro numa passada-relâmpago, como a se desvencilhar de alguém que, invisível, lhe agarrava a manga da camisa. Pigarreou, porque sentia que alguma coisa lhe escapava. – Nenhum desacerto. Nada que uma boa combinação de ervas não serene.

Ela sorriu de novo. Um jeito brejeiro que o tirou do prumo mais uma vez. Nem esperou que ele completasse a frase sobre a natureza dos ritmos cardíacos. – Sonhei que o encontraria numa dessas bordas do sertão. Foi difícil, que é como se o sertão estivesse em toda parte, sabe, mas o achei. Ele tinha perto da convicção de já ter ouvido aquilo. E simplesmente não sabia o que responder. Daí que a tradicional segurança quase cartesiana se incendiava diante daqueles acontecimentos, reduzida a cinzas imprestáveis.

Era dele agora a palpitação, como um galope solitário no ressequido da mata. Ele descompassado, ela terminou de abotoar o vestido, no que soava a uma despedida. – A senhora volta a uma nova consulta? Não disse nem que sim nem que não. Foi rumando à porta e quis compreender, por fim: – O remédio é amansar o que cavalga de incerteza em mim? Era. Já se afastava, quando ele pediu: – Não vá sem dizer seu nome. Ela se virou sorrindo e quase soletrou: – Di-a-do-rim. E ele teve ali a certeza, cristalina sensação, de que, mais luas menos luas, se reencontrariam num orvalhar qualquer desses, sertão afora. Num redemoinho, talvez.


- Por vezes, esse palpitar me vem como fosse um galope no ressequido da mata, um sem freio na galhada de espinhos.

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