Historiador francês faz investigação sobre relação entre elite da Antiguidade clássica e camadas populares

por Marcelo Coelho da Fonseca 15/04/2016 13:22
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“O povo romano, que em outros tempos distribuía magistraturas, ligas e legiões, tornou-se modesto. Não exige nada mais do que duas coisas: seu pão e seu circo.” A fala do poeta romano Juvenal, autor das Sátiras, no século 2, se tornou símbolo da crise da República romana. Segundo ele, o panem et circenses seria distribuído ao povo romano pelas classes dirigentes em troca de sua alienação e despolitização. A expressão ultrapassou a Antiguidade e é repetida nos dias de hoje em vários lugares do mundo – aqui no Brasil, alguns substituem circo por televisão ou futebol para proclamar uma suposta alienação da população.

Em Pão e circo – Sociologia histórica de um pluralismo político, o historiador e arqueólogo francês Paul Veyne descontrói a expressão usada para caracterizar a alienação popular. Qual seria o motivo de a elite romana organizar jogos e distribuir trigo para a plebe? Seria uma prática diversionista? Ação populista para despolitizar as pessoas? Enquanto o poeta Juvenal via ali a troca da participação política ativa de seus contemporâneos por diversão e alimento, o historiador foi atrás das raízes da prática de patrocinar eventos grandiosos. Veyne se voltou às cidades-estados gregas para descobrir a origem de tais práticas.

A pesquisa minuciosa do historiador francês foi publicada em 1976, mas só recentemente ganhou tradução no Brasil. O autor faz um relato vívido que oferece ao leitor uma viagem à Antiguidade, que remonta ao terceiro século antes de Jesus Cristo, descrevendo os costumes dos povos antigos que mais influenciaram as sociedades ocidentais atuais – gregos e romanos. Mais do que simples mecanismos de controle da plebe, a política do pão e circo já vinha sendo adotada desde Atenas, maior cidade-estado da Grécia, onde eram comuns os chamados “notáveis” gastarem seus próprios recursos para construir teatros, monumentos e oferecer banquetes populares.

As doações ocupavam lugar muito importante para as sociedades antigas, prática que o autor chama de evergetismo. Ficaram mais famosos os espetáculos circenses e as lutas de gladiadores que atraíram multidões a Roma, mas também eram comuns as distribuições de terras e presentes para marcar datas importantes, além da construções de monumentos públicos que seriam entregues à população, como anfiteatros, termas e basílicas. O historiador defende que tais obras, geridas por cidadãos ricos, não se tratava de tentativas de despolitizar ou manobrar o povo para seus interesses.

Na Antiguidade, os notáveis não viviam isolados em seus castelos, longe da plebe, mas viviam nas cidades e enxergavam o ambiente urbano como sua própria propriedade. As classes nobres se assumem como dirigentes da coletividade, valorizando a estima e o prestígio social. Dessa forma, houve uma busca constante em embelezar sua própria cidade por meio do mecenato. As doações ostentatórias demonstravam que a cidade não poderia viver sem a atuação dos notáveis romanos ou gregos. O pão e circo não se trata de uma despolitização do povo, mas de um cálculo político sábio adotado pelas classes dirigentes.

O evergetismo é dificilmente compreendido pela sociedade contemporânea, dominada pelo mercado e pela regulamentação. Sem dúvida, nos dias de hoje, uma obra patrocinada por um empresário multimilionário levanta questões sobre os interesses em tal gasto e até suspeitas de favorecimento político. Por isso, Veyne reconstrói as relações da Antiguidade, em que o comprometimento com o bem comum e o sentido de dever para a coletividade eram vistos de forma diferente.

Conceder presentes e dons à coletividade era algo extremamente importante para gregos e romanos. Para nobres de Atenas e Roma, o interesse na vida social tinha papel importante, uma vez que governar seria uma “honra” que cabe aos bem-sucedidos. O autor, no entanto, não desconsidera que as práticas acabam concentrando o poder nas mãos de uma classe social. Veyne relembra que, assim como no mundo contemporâneo, as desigualdades se perpetuavam e, com o passar do tempo, a percepção de que cabia aos nobres tomar as decisões se consolida. “Um cidadão grego privado de seus direitos políticos se parecerá muito com um cidadão passivo do século 19.” Ele cita uma análise do filósofo grego Aristóteles ao abordar o regime dos notáveis: “A democracia se transforma em oligarquia quando uma classe rica é mais poderosa que a multidão e esta última se desinteressa pelos negócios do Estado”.

Pão e circo – Sociologia histórica de um pluralismo político

• De Paul Veyne
• Unesp
• 774 páginas
• R$ 132 l

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