Caderno Pensar debate feminismo

Ativistas e pensadoras de idades e atuações distintas refletem o papel da internet no movimento e seus grandes desafios

por Márcia Maria Cruz 18/03/2016 13:14

As feministas estão em todos os lugares com um discurso afiado. Alguém desavisado pode pensar que o feminismo saiu do armário, dada a força do debate na esfera pública brasileira. “Chega de fiu-fiu”, “Meu primeiro assédio”, “Meu amigo-secreto” são campanhas iniciadas no ambiente digital que trouxeram o tema de igualdade de gênero para o centro das atenções.

A discussão ficou mais forte quando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) trouxe numa das questões a citação clássica de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher, torna-se”. Para completar o furacão em torno do feminismo, os 5,8 milhões de candidatos do exame tiveram que dissertar sobre a persistência da violência contra a mulher no Brasil.

Maria Ribeiro/Divulgação
Imagem do livro Nós madalenas - uma palavra pelo feminismo (foto: Maria Ribeiro/Divulgação)

Diante da convocação para desconstrução do machismo e o chamado para o empoderamento feminino – dois termos bastante usados pelas ativistas –, há quem reaja dizendo que não aguenta mais tanto mi-mi-mi. Em meio à efervescência do debate as feministas criaram a hashtag #machistas não passarão.

Para entender esse momento protagonizado por elas, o Pensar conversou com feministas com idades, trajetórias e atuação distintas. Para todas foram apresentadas questões sobre a história do feminismo, os desafios e o ativismo na web. Cada qual ficou livre para responder às perguntas que se aproximassem mais de sua experiência com o movimento. É consenso entre elas que um ponto de partida para o debate avançar é entender que o feminismo não é o oposto do machismo e também a compreensão de que não há o feminismo, mas existem feminismos.

Para a doutoranda em direito pela UFMG Cynthia Semíramis, o ativismo nas redes tem caráter imediatista e reage a alguma situação discriminatória. “A repercussão desse ativismo é importante, pois estimula o debate sobre a situação das mulheres”, diz ela, que escreve para o site cynthiasemiramis.org.

A internet como arena de debate dá visibilidade às denúncias e contribui para mobilizações, na avaliação da doutoranda em ciência política pela UFMG Clarisse Goulart. Os dispositivos são usados na organização interna do movimento, possibilitando diálogos impossíveis de ser realizados presencialmente. Clarisse destaca vitórias obtidas por organizações de mulheres que recorreram às mídias sociais.

“Denunciaram o teor machista de várias campanhas publicitárias, provocando retratações e reformulações, visibilizaram a recorrência de formas de violência sexista, como na campanha ‘chega de fiu-fiu’ ou na iniciativa do ‘meu amigo-secreto’, que fez denúncia anônima de casos de assédio e machismo”, pontua.

Clarisse integra a Marcha Mundial das Mulheres, movimento que luta contra a pobreza e a violência contra elas. “O feminismo possibilita uma base de luta por igualdade e liberdade não só para as mulheres, mas para todas as pessoas.

A partir de uma profunda transformação nas relações políticas, econômicas, sociais, sexuais e afetivas, o feminismo que eu me alinho busca mudar o mundo para mudar a vida das mulheres e mudar a vida das mulheres para mudar o mundo.”
Maria Ribeiro/Divulgação
(foto: Maria Ribeiro/Divulgação)

A mestre em ciência política pela UFMG Áurea Carolina considera que a presença das feministas nas redes sociais é reflexo de um novo ciclo, que algumas feministas identificam como quarta onda. “Só poderia ocorrer nesse momento histórico, com as mulheres se apropriando cada vez mais das novas tecnologias de informação e comunicação.” O termo quarta onda foi proposto pela coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem), Marlise Matos.

A ativista lembra que as jovens têm se destacado nesse ativismo em blogs, canais de vídeos e páginas temáticas. “Elas conseguem mostrar que tudo tem a ver com o feminismo: cultura, comportamento, moda, saúde, beleza, culinária, principalmente feministas vegetarianas e veganas.”

Para a publicitária Juliana Sampaio, o que mais chama a atenção é a idade cada vez mais jovem das militantes. Juliana lembra que as adolescentes têm muita familiaridade com as pautas do feminismo e seus jargões. E mais. Reivindicam espaços, voz e direitos. Juliana tem um exemplo em casa. Ela é mãe de Alice Vitral, de 15 anos, que integra o coletivo feminista Lunáticas. "Vejo e acredito que boa parte da minha geração também veja a internet e, principalmente, as redes sociais como parte (se não uma extensão) da vida real.
Sendo assim, os assuntos tratados nessas são aqueles que refletem a nossa realidade. Se nas redes sociais feminismo está nos trend toppings, a chance é que também esteja no nosso cotidiano e em nossas vidas",afirma Alice.


Juliana destaca a importância das redes sociais de conectar as mulheres e promover troca de ideias e experiências. “Por ser um movimento muito mais horizontalizado e independente, o ciberativismo tem ampliado muito o alcance dessas ideias.

Pode não ser um feminismo tão estruturado e como o da academia, mas, com certeza, é muito mais abrangente e democrático. Também funciona como uma porta de entrada para um estudo mais aprofundado do tema e de suas pautas.”

Apesar dos avanços que as mídias sociais permitem, Cynthia alerta para a necessidade de a mobilização ultrapassar o ambiente digital. “Pode se tornar algo cansativo para a opinião pública se continuar apenas debatendo e não apresentar propostas concretas”. Em sua avaliação, esse ativismo busca dialogar com a esfera jurídica, que é um caminho para conquistar direitos.

“De modo geral há muita resistência à discussão jurídica, com ativistas repudiando o direito ou utilizando erroneamente conceitos jurídicos. Também há ações inadequadas, sujeitando as ativistas a processos judiciais, inclusive criminais”, avalia.

A estudante Clara Vieira Machado, de 14, também faz ressalvas às mídias sociais. “A internet é uma faca de dois gumes. Muitas meninas chegaram ao feminismo através das redes sociais. Por outro lado, há muitas mensagens de ódio contra o movimento, que acabam afastando meninas e futuros apoiadores da causa.”

Desafios se renovam
Os desafios enfrentados pelas feministas são de diferentes níveis, embora todos estejam relacionados. O debate sobre a legalização do aborto, a redução da violência contra mulher, em especial a mulher negra, e a representação política são algumas das principais bandeiras do movimento feminista brasileiro.

Mas não são apenas os desafios das feministas. Também há um debate interno para que o movimento possa acolher mulheres de diferentes raças, classes e sexualidades. No campo da política, a busca é por representação política.

Para Juliana Sampaio, a legalização do aborto é uma das pautas mais urgentes do feminismo: sem autonomia para gerenciar nossos próprios corpos, fica difícil qualquer outro avanço. “Num momento em que as pautas conservadoras têm ganho cada vez mais espaço no debate político do país, temos ainda um longo caminho para manter e ampliar nossas conquistas”, diz.

Também nessa direção, Cynthia Semíramis entende que não se pode perder o que já foi conquistado. “Um dos principais desafios é não perder direitos, especialmente em relação ao direito ao aborto legal”, afirma a doutoranda em direito pela UFMG.

A pesquisadora lembra que o Código Penal autoriza aborto nos casos em que a gravidez seja resultado de estupro, o feto seja anencéfalo ou o aborto seja o único meio de salvar a vida da gestante. “Mas existem diversos projetos de lei em andamento para proibir qualquer tipo de aborto, e há um lobby intenso para aprovar esse tipo de projeto”, ressalta.

Ela destaca que a Lei Maria da Penha, que completa 10 anos, foi um marco, mas ressalta que ainda falta estrutura institucional para que ela seja realmente eficiente. “Faltam delegacias especializadas, falta capacitação para que os profissionais responsáveis por esses atendimentos saibam como receber essas mulheres.

Ainda não estamos numa posição justa em relação à equiparação salarial e os números de feminicídio no Brasil são aterrorizantes.” No campo doméstico, Juliana destaca que o machismo brasileiro ainda faz com que as tarefas relacionadas ao cuidado da casa e dos filhos sejam relegadas mais às mulheres do que aos homens, mesmo as que também estão no mercado de trabalho. “Isso gera uma divisão de tarefas muito desigual e injusta.”

As diferentes vertentes do feminismo devem-se ao entendimento de que não se pode essencializar os gêneros. Ser mulher não depende apenas dos atributos biológicos, foi apontado por Simone de Beauvoir no clássico

O segundo sexo, publicado em 1949. Quem tem contribuído para o debate dos feminismos é a filósofa Judith Butler, autora de Problemas de gênero – feminismo e a subversão de identidade. Uma das discussões que ela propõe é uma revisão de um discurso centrado na figura de uma mulher, que se estabelece no contraponto a uma ideia universal de patriarcado.


Com sua teoria, Butler propõe que a mulher é constituída a partir de outros pertencimentos de raça, classe social, orientação de gênero, entre outros. “Ao longo das últimas décadas, deu-se cada vez mais uma pluralização das sujeitas do feminismo, em que é possível destacar a organização de mulheres sindicalistas, de mulheres do campo, das mulheres negras e também das mulheres lésbicas e trans.


Ainda que muitas mulheres desses setores sempre construíram a luta política das mulheres por igualdade e liberdade, é possível identificar protagonismo, visibilidade e reconhecimento maiores desses setores”, diz Clarisse.

Nesse sentido, a cientista política destaca que novas realidades foram trazidas para o centro do feminismo, o que representa novas pautas políticas e novas disputas. “Um desafio é conseguir com que o feminismo, enquanto valor, luta política e movimento, abarque a pluralidade, dê visibilidade para as diferentes realidades e, ao mesmo tempo, consiga construir alguma unidade ou plataformas comuns”, diz.

 

NÓS, MADALENAS
As fotografias que ilustram a reportagem fazem parte do livro Nós, Madalenas – uma palavra pelo feminismo, da fotógrafa Maria Ribeiro e foram gentilmente cedidas pela autora para o Pensar. A abordagem direta da artista questiona padrões estéticos ao retratar mulheres e palavras que expressam sentimentos, ideais, ideologias e manifesta, sobretudo, a potência do corpo feminino. A publicação, com 100 fotografias e relatos que exaltam a diversidade, terá dois lançamentos em Belo Horizonte: hoje, às 20h, no Odeon (Rua Adamina, 125, Santa Tereza), acompanhado de mesa-redonda; amanhã, às 11h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi).

Maria Ribeiro/Divulgação
(foto: Maria Ribeiro/Divulgação)
 

 

Clarisse Goulart *

Os estudos acadêmicos mostram que o feminismo se organiza em diferentes momentos, chamados ondas. A primeira onda do feminismo é reconhecida pelo período que compreende o final do século 19 e início do século 20, em que se intensificou a luta pelos direitos políticos, em conjunto com uma série de outras reivindicações – a luta pelo divórcio e pelo fim da violência doméstica, pelo direito à propriedade e herança, pelo direito ao trabalho remunerado, entre outros. Essa onda foi identificada nos Estados Unidos com a Declaração de Seneca Falls, em 1848, na Inglaterra, como nos mostra o filme recentemente lançado As sufragistas, e também em muitos países da América Latina. Nesse mesmo momento, muitas mulheres também se organizaram em sindicatos, associações de trabalhadoras/es e também construíram as lutas socialistas e anarquistas. Melhores condições de trabalho e salário para as mulheres, além de mudanças na moral sexual e em favor de relações amorosas mais livres fizeram parte da luta dessas mulheres.

O renascimento da intensificação da luta feminista, chamada de segunda onda, esteve associado a um momento irruptivo em muitas partes do mundo, em que novos movimentos sociais tomaram a cena política, politizando a luta racial, ambiental, sexual e também criando questionamentos da ordem econômica e política. No Brasil e América Latina, como algumas teóricas como Celi Pinto e Marlise Matos nos chamam a atenção, a segunda onda tomou a forma de resistência à violência e falta de democracia das ditaduras militares, além de incorporar uma nova visão das relações entre homens e mulheres, questionar fortemente a ideia da maternidade como um destino natural das mulheres, reivindicar o direito de viver a sexualidade para além daquela imposta pelas relações heterossexuais no casamento, politizando também as relações privadas e denunciando as formas de violência sexista fortemente naturalizadas.

Algumas autoras reconhecem, no Brasil e na América Latina, duas outras ondas. A professora Celi Pinto identifica uma terceira onda no momento de redemocratização e do reforço das demandas das mulheres na Constituinte, e Marlise Matos teoriza sobre uma quarta onda do feminismo em curso na região a partir da pluralização das atrizes, das relações com o Estado e de novas formas de mobilização.

É indiscutível como, no Brasil, a luta feminista está efervescente: as mulheres têm construído múltiplas frentes de reivindicações, politizado agendas importantes e dialogado com as disputas políticas na conjuntura atual. Em sua diversidade, as mulheres fazem isso de modo irreverente e subversivo, ocupando as ruas, construindo intervenções nas redes e também nas diversas instituições de poder. Sem dúvida, esse processo não é novo, mas faz parte da longa trajetória de construção do feminismo brasileiro, que, a depender do momento político, organizou formas de luta diferentes, deu visibilidade a determinadas agendas e deu voz aos diferentes setores de mulheres organizadas.

*Doutoranda em ciência política pela UFMG e integrante da Marcha Mundial das Mulheres

 

 

AFIRMAÇÃO RADICAL

Em 1910, a baiana Leolinda Daltro criou o Partido Republicano Feminino no Brasil. Em eventos políticos, entrava no meio do povo e se posicionava em frente ao palanque. De lá, em cima de um banquinho, fazia barulho até lhe darem a palavra. Em 2015, uma performance do coletivo Bacurinhas, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), chocou por apresentar uma nudez escancarada a fim de romper com o paradigma da mulher objeto. Em 8 de março deste ano, um grupo de mulheres ocupou um prédio abandonado na Rua Guaicurus, em Belo Horizonte, reivindicando o espaço para um centro de acolhimento da mulher agredida. Nasceu a Ocupação Tina Martins. Afinal, o que é ser radical no feminismo?

A pesquisadora e professora Constância Duarte, da Faculdade de Letras da UFMG, observa que o radicalismo está presente desde o início do feminismo. “É uma forma de chamar a atenção para o movimento e exigir que seja ouvida”, diz. Ela lembra iniciativas contemporâneas, como as ucranianas do Femen e a Marcha das Vadias, que usam o próprio corpo como bandeira. “Se peito de mulher sempre foi erotizado, elas desconstroem isso”, diz.

“Como coloca o dedo na ferida, parece que é muito radical”, explica Manu Pessoa, atriz integrante do coletivo Bacurinhas. Para ela, é impossível fechar os olhos depois de revisitar toda a história de luta das mulheres para criar o espetáculo Calor na bacurinha. “Talvez soe agressivo o nosso trabalho com a nudez. Mas você fica mais intolerante a certas coisas. Arte é revolucionária”, defende.

Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da UFMG, explica que o termo “feminazi”, usado para definir feministas que odeiam homens (misândricas), é pejorativo e utilizado pelo senso comum para deslegitimar a luta. “Não é uma proposta do feminismo tomar o poder e substituir o domínio dos homens pelas mulheres. Isso é um equívoco”, explica. Segundo ela, os homens sentem os privilégios ameçados e lançam mão desses recursos. “A participação parlamentar da mulher é de apenas 9% na Câmara. Não se quer oprimir. Quer-se uma sociedade igual para homens e mulheres”, diz.

Maria Ribeiro/Divulgação
(foto: Maria Ribeiro/Divulgação)

A primeira onda do feminismo foi marcada por um feminismo branco, heterossexual e burguês. A partir dos anos 1960, houve uma pluralização interna, colocando em debate a agenda das negras, lésbicas, transexuais, rurais e indígenas. “Nesse momento, é o que faz sentido. Desigualdade inerente dentro da própria experiência de ser mulher”, diz Marlise.

As feministas que se autodeclaram “radfem” consideram integrantes do movimento apenas aquelas que têm a experiência corporal de ser mulher – excluindo as trans, por exemplo. Marlise pondera que há razoabilidade na visão do grupo. “Mesmo fazendo trânsito para o gênero, a trans se socializou em uma experiência de mundo masculinizada”, explica Marlise. Ela se diz a favor dos homens no feminismo, mas pondera que até os aliados vieram de uma cultura machista. “Nesses lugares nos sentimos tolhidas”, diz.

Monah El Kadri, do Movimento de Mulheres Olga Benário, milita pela mulher pobre e negra. O movimento foi responsável pela Ocupação Tina Martins. A jovem acredita na necessidade de ações radicais para buscar mudanças mais profundas.

São 300 casos por dia de violência contra a mulher nos boletins de ocorrência. BH tem apenas uma casa-abrigo. “A rede de proteção é insuficiente. As informações são confusas. Os serviços não são 24 horas. Na sexta-feira de noite, a mulher sai da delegacia e não tem para onde ir. Volta para casa e o marido a agride mais uma vez. A gente precisa que esse ciclo termine”, diz. “Estamos há um ano discutindo o feminicídio. Louise acabou de ser assassinada na Universidade de Brasília. Se o Estado se omite, as feministas, especialmente as jovens que têm essa energia, estão fazendo o que é preciso”, alerta Marlise.

 

 

 

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