Publicação dá lições de um não jornalismo

'Vale-tudo da notícia' descreve como o tabloide britânico News of the World criou métodos escusos lidar com fontes

por Mariana Peixoto 18/03/2016 12:55

O jornalismo investigativo, hoje tão anacrônico com a rapidez exigida pela prática jornalística na internet, ganhou novo fôlego com a repercussão de Spotlight: Segredos revelados, filme vencedor do Oscar deste ano.

O trabalho empreendido pelo The Boston Globe denunciou, no início do século, rede de pedofilia praticada pela Igreja Católica.
No Reino Unido, o jornalismo tem contornos únicos. Pode ser chamado de “reino dos tabloides”, mesmo com o domínio da internet para notícias rápidas e escandalosas.

Mês passado, por exemplo, a Inglaterra viu nascer The new day, um novo jornal com 2 milhões de exemplares e exclusivamente de papel. Novamente, algo anacrônico.
Pois outra investigação de fôlego, empreendida por um dos mais respeitados repórteres britânicos, redundou em um dos maiores escândalos da imprensa mundial.

Editora Intrínseca/Divulgação
(foto: Editora Intrínseca/Divulgação)

Vale-tudo da notícia (Intrínseca), de Nick Davies, hoje correspondente especial do The Guardian, revela toda a história por trás dos grampos realizados, ao longo de vários anos, pelo tabloide News of the World. Uma das publicações do magnata Rupert Murdoch, o jornal, que chegou a imprimir 3,5 milhões de exemplares aos domingos, foi fechado em julho de 2011.

No livro, Davies reúne o material que havia denunciado na imprensa britânica na época. Traça, com precisão cirúrgica, o passo a passo de toda a história, que envolveu celebridades, políticos, milionários, a família real e até mesmo a Scotland Yard.

É uma narrativa com muito sabor, pois o repórter descreve uma história de intriga, mentira, suborno e corrupção que tem personagens conhecidos do grande público – do ator Hugh Grant e o atleta David Beckham até mesmo os familiares do brasileiro Jean Charles de Menezes.

Não por acaso, mal o livro foi publicado na Inglaterra (com o título de Hack attack, em agosto de 2014), seus direitos de adaptação para o cinema começaram a ser disputados. George Clooney ganhou a disputa e, em setembro daquele mesmo ano, foi anunciado que ele produziria, dirigiria e atuaria no longa.

Atualmente, o projeto está sendo desenvolvido em conjunto com a Sony Pictures. Vale-tudo da notícia é um livro de inúmeros personagens, tanto que o volume, de quase 500 páginas, é aberto com um “quem é quem”, nomeando uma centena deles. Mas há dois protagonistas incontestes.

O primeiro é Andy Coulson, editor-chefe de News of the World. Ele renunciou ao cargo no início do escândalo e se tornou chefe de imprensa do primeiro-ministro David Cameron. O segundo é Rebekah Brooks, que se tornou editora-chefe do tabloide e chegou ao ápice da profissão ao assumir o cargo de CEO da News International, o braço britânico da News Corporation, conglomerado global de comunicações de Murdoch.

Esses dois personagens, sempre muito próximos do poder, comandavam um jornal que tinha um método de “apuração” da notícia bastante peculiar. Detetives particulares e toda a sorte de picaretas eram pagos pelo jornal para permitir acesso dos repórteres aos celulares das pessoas a quem se interessavam. Estes ouviam as mensagens gravadas e tinham acesso ao número do telefone de quem lhes havia ligado.

Quando descoberto algum segredo (fosse caso extraconjugal, envolvimento com drogas ou qualquer outro deslize), “o jornal ligava para a vítima, blefava, dizendo que a matéria estava pronta para ir para a rotativa, e então oferecia publicar uma versão menos prejudicial se a fonte lhe desse confirmação... Andy Coulson fez várias ligações desse tipo e gostava de anunciar com um sorriso: ‘Isso sim é jornalismo marrom. Você detona os caras de manhã e à tarde eles te ligam para agradecer’”, descreve Davies.

Era tudo corriqueiro. E ninguém discutia se estava certo ou errado (assédio moral era quase regra no jornal). A falta de limites chegou ao máximo quando foi revelado, na época do fechamento do tabloide, que repórteres teriam inclusive invadido a caixa de mensagens de Milly Dowler, adolescente desaparecida em 2002, cujo corpo foi encontrado algum tempo mais tarde.


A pressão popular só cresceu quando foi revelado que o tabloide também não poupou parentes de vítimas dos atentados à bomba no metrô de Londres, em 2005. Os absurdos se somam de tal forma que, em momentos, fica a impressão de que se trata de uma ficção.

 


 VALE-TUDO DA NOTÍCIA

• De Nick Davies
• Editora Intrínseca
• 480 páginas
• R$ 49,90 (livro) e R$ 34,90 (e-book) l

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