Geraldo Vandré é tema de três biografias e prepara concerto com o maestro Júlio Medaglia

Depois de anos de reclusão, compositor paraibano e símbolo da resistência à Ditadura Militar celebra os 50 anos do sucesso 'Disparada'

por Maria do Rosário Caetano 11/03/2016 12:30
Manoel Motta/O Cruzeiro/EM - 9/11/67
O cantor e compositor Geraldo Vandré apresenta 'Pra não dizer que não falei das flores', no 3º Festival Internacional da Canção, em 1967. A música, considerada um hino à liberdade e contra as Forças Armadas, foi responsável por sua perseguição pela ditadura militar (foto: Manoel Motta/O Cruzeiro/EM - 9/11/67)
“Che Guevara ou sua imagem foi, a rigor, um dos mais eficientes garoto-propaganda da indústria armamentista.” Essa declaração foi feita pelo compositor e intérprete Geraldo Vandré, que, em certo momento, foi tido como o “Che Guevara da canção brasileira”. Ele proferiu a dura avaliação sobre o guerrilheiro argentino em sua última aparição pública, no Festival Aruanda, em dezembro passado, em João Pessoa.

O artista paraibano, de 80 anos, é tema de três livros biográficos lançados desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu o direito de publicação de biografias não autorizadas. Ele, que não canta no Brasil desde dezembro de 1968, não deverá fazê-lo, de forma direta, tão cedo. Mesmo assim, prepara o concerto Seis estudos para piano, que deseja ver executado pela Orquestra Sinfônica da Paraíba, sob regência do maestro Júlio Medaglia, de 77, no segundo semestre deste ano.

O maestro paulistano confirma entendimentos com o compositor e a disposição de reger Seis estudos para piano na Paraíba. E mais, pretende comemorar os 50 anos de Disparada, a famosa toada que Vandré compôs com o parceiro Theo de Barros e que venceu – junto com A banda, de Chico Buarque –, o Festival da Canção da Record, em 1966. Na voz de Jair Rodrigues, Disparada tornou-se o maior sucesso de Vandré, sendo regravada por artistas como a italiana Ornella Vanoni, o grupo chileno Ameríndios, e os brasileiros Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho, Adauto Santos, Duofel, Wilson Simonal, Sérgio Reis e Zezé de Camargo e Luciano.

O Poder Legislativo da cidade de João Pessoa havia preparado grande homenagem a seu filho ilustre: a instalação, no Parque Solon de Lucena, de estátua do artista, similar à de Carlos Drummond de Andrade, no Rio, diante da qual se formam filas para selfies. Afinal, o compositor nasceu em casa situada na vizinhança da famosa praça e foi aluno do famoso Lyceu Paraibano, forte referência arquitetônica e educacional da cidade.

Projeto de lei apresentado pelo vereador Fuba (Flávio Eduardo Morojo Ribeiro) foi aprovado pelo Legislativo municipal e sancionado pelo então prefeito Ricardo Coutinho, atualmente governador do estado. Os autores das biografias de Vandré lamentam o não cumprimento dessa lei municipal, mas não explicam por que projeto, aprovado em 2008, continua na gaveta. Teria Vandré se negado a virar estátua em vida?

Arquivo O Cruzeiro/EM - 12-11-66
Em 1966, Vandré e Theo de Barros, parceiros no sucesso 'Disparada', que completa 50 anos de criação (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM - 12-11-66)
Ao Estado de Minas, o vereador Fuba, também compositor gravado por Elba e Zé Ramalho, Lenine e Renata Arruda, explicou: “O Ministério Público embargou nossa iniciativa, aprovada pelos vereadores e sancionada pelo prefeito, por considerar que lei federal impede monumentos e nomes de rua em homenagem a pessoas vivas”. Frente ao impedimento legal, o vereador, de 60 anos, fã de Vandré desde a juventude, diz que “a homenagem será executada quando ele não estiver mais entre nós”. Mas torce para que o artista “tenha longa vida”. Enquanto a estátua não adorna a Praça Solon de Lucena, Fuba promete somar-se aos esforços de Vandré para que a Sinfônica da Paraíba execute seus Seis estudos para piano e homenageie os 50 anos de Disparada.

No concerto que o maestro Medaglia deve reger, Vandré mostrará sua obra instrumental composta ao longo de três anos. Sobre essas composições, detalha: “Uma pianista (Beatriz Malnic, a Ismaela) recém-saída da Universidade de São Paulo (USP), tem trabalhado comigo. Tive encontro com o governador (Ricardo Coutinho, do PSB) para falarmos da apresentação de Seis estudos para piano pela sinfônica de meu estado natal. Ele foi muito receptivo”.

O compositor garantiu só ter lido uma das três biografias publicadas sobre sua trajetória, sem especificar qual. E afirmou, com todas as letras, que “o STF tomou decisão errada”. “Estudei direito, sou doutor em leis na minha cultura”, ponderou. “Essas biografias constituem delitos. Vou resumir o assunto de forma simplificada: existe a personalidade, que é de direito público, e existe a pessoa artística, que é de direito privado. No caso de um presidente da República, de um político, estamos no plano do direito público, pois a 'personalidade' deles pertence ao Estado brasileiro. No caso do artista, embora o Supremo Tribunal Federal tenha aprovado decisão em contrário, estamos na esfera privada. A instituição tomou decisão errada. Afinal, ela faz parte desta crise em que o Brasil se debate. Há que se aprender a diferença mínima entre legalidade e legitimidade.”

O autor de Requiem para Matraga não pretende escrever sua autobiografia.“Meu problema é tempo. Dá muito trabalho, tenho outras coisas a fazer. Pequenas coisas do dia a dia. Tenho que me ocupar de mim. Não vivo como um artista. Quando parei de cantar, era o artista mais caro do país. Hoje vivo de modesta aposentadoria.” Os biógrafos registram que Geraldo Vandré era o artista mais bem pago do país, desde o triunfo de Disparada. Ganhava 8 milhões de cruzeiros, quando Roberto Carlos, o líder da Jovem Guarda, ganhava 3 milhões. Hoje, o cidadão Vandré vive com a aposentadoria de advogado da antiga Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab).

Lacunas sobre o exílio e o regresso

As três biografias recém-lançadas de Geraldo Vandré – Não me chamem Vandré, do paraibano Gilvan de Brito; O homem que disse não, do mineiro Jorge Fernando dos Santos; e Uma canção interrompida, do paulista Vitor Nuzzi – revelam a paixão de seus autores pelo compositor paraibano e o esforço que fizeram para reconstruir sua conturbada trajetória. Esforço que se fez obrigatório, já que o compositor de Pra não dizer que não falei das flores – definida por Millôr Fernandes como a “Marselhesa brasileira” – não colaborou com nenhum deles. Nem com seu conterrâneo Gilvan de Brito.

A melhor das três biografias traz a assinatura de Vitor Nuzzi. Primeiro, o jornalista editou 100 exemplares, às próprias custas, já que livros biográficos, antes de decisão histórica do STF, dependiam de autorização do biografado ou de seus herdeiros.

Com as biografias liberadas, Nuzzi aperfeiçoou seu trabalho, incorporando inclusive material revelado, em primeira mão, pelo confuso “ensaio biográfico” de Brito. O jornalista paraibano localizou impressionante troca de correspondência entre Vandré (datada de 7 de outubro de 1976) e o general Moacyr Barcellos Potyguara. Ao longo de 12 páginas (74 a 85), ficamos sabendo que o compositor enviou ao Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) requerimento no qual solicitava que Caminhando não fosse mais vista como “objeto de desacato à imagem das instituições militares brasileiras”.

Para embasar seu pedido, Vandré teceu longas considerações jurídicas. Em vão. Em sua longa resposta, o general Potyguara não se comoveu e se negou a expedir “o certificado de isenção de responsabilidade”. Sugeriu que o compositor fosse procurar a instituição devida, no caso, o Departamento de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal. E, ancorado em famoso artigo do general Octávio Costa (“As flores de Vandré”, publicado no Jornal do Brasil, em 6 de outubro de 1968, logo depois do sucesso de Caminhando), Potyguara deixou claro que os versos de Vandré eram, sim, ofensivos às Forças Armadas.

O livro de Gilvan de Brito tem uma tese a defender: Vandré, que se tornou famoso como espécie de Che Guevara da canção, teria sofrido algo semelhante à síndrome de Estocolmo. Ou seja, depois de contestar os militares, teria aderido a eles. A tese é das mais controversas, pois trabalha com dois Vandrés antagônicos: um herói de esquerda, e outro dependente de seus antigos algozes.

Quem conhece melhor a trajetória do artista, sabe que ele sempre foi muito independente em suas decisões, egocêntrico, brigão (vide suas divergências com Alberto Helena Jr., com seus músicos, com as redes de TV) e voluntarioso. Em 1968, no mítico 1º  de Maio, Vandré posicionou-se contra metalúrgicos comandados pelo líder sindical José Ibrahim (1947-2013), que apedrejaram o palanque onde discursava o governador Abreu Sodré. Ou seja, emprestou sua figura mitológica ao político, posando com ele em foto distribuída pela assessoria de imprensa do Palácio dos Bandeirantes e exposta com destaque em grandes diários paulistanos.

Nuzzi, que é quem mais se dedica ao assunto, não o aprofunda como deveria. Abreu Sodré, que aborda o fato em suas memórias (No espelho do tempo, 1995 ), conta inclusive que hospedou Vandré nos aposentos do palácio do governo, os mesmos que, em novembro de 1968, seriam disponibilizados à rainha da Inglaterra, Elizabeth II, em visita oficial ao país. O contraponto às declarações registradas em livro por Sodré é fornecido lacônica e burocraticamente por José Borges de Campos, empresário do compositor na ocasião (“Vandré nunca ficou no Palácio dos Bandeirantes!”, página 214).

Marcus Mendes/Divulgação
Em dezembro, Vandré marcou presença no Festival Aruanda, realizado em João Pessoa, sua cidade natal (foto: Marcus Mendes/Divulgação)
Saída do Brasil
A saída de Vandré do Brasil é o tema mais controverso e lacunar de sua trajetória. Mais uma vez, Nuzzi trabalha com mais e melhores fontes. Mesmo assim, reconstituição convincente do episódio ainda está por ser construída. Outro tema complexo: a relação de Vandré com as drogas, em especial nos anos finais de seu exílio, quando a saudade do Brasil o atormentava a ponto de deixá-lo gravemente enfermo. Ele foi preso, junto com amigos músicos, numa viagem de carro, em território francês, quando a polícia encontrou certa quantidade de haxixe no interior do veículo. Como o assunto é tabu, tudo o que se refere a ele é ambíguo e pouco elaborado.

O retorno de Vandré, que teria sido intermediado pelo general Estevão Taurino Netto, amigo da família Pedrosa de Araújo Dias, é bem descrito pelos três biógrafos (melhor por Nuzzi), já que, apesar das lacunas, há documentação razoável sobre o assunto nos jornais diários. Na TV, não restou nada, pois a Rede Globo parece ter destruído tudo que havia em seus arquivos relativo a Vandré, inclusive as imagens dele cantando Caminhando no Maracanãzinho.

Para se ter uma boa visão panorâmica da trajetória do artista, há que se ler os três livros. Embora redundantes em muitas partes, cada um tem seus trunfos. O de Gilvan de Brito está nos capítulos paraibanos do “ensaio biográfico”, pois conhecendo bem a história e a geografia da cidade onde o compositor nasceu, ele cobre bem a infância e a juventude de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias (e de seu pai, o doutor Vandregísilo, que chegou a candidatar-se a governador da Paraíba pelo Partido Comunista Brasileiro). Depois (com exceção do material Vandré versus Potyguara), o livro perde o rumo e se mostra pouco elaborado.

Os pontos fortes do livro do mineiro Jorge Fernando são a qualidade do texto – trata-se de ficcionista premiado – e a excelência da edição (da Geração Editorial, de Luiz Fernando Emediato). O caderno de fotos e documentos que enriquecem o livro, em 32 páginas, em cores e impressão de ponta, é formidável.

Se optar por um só livro, o leitor deve escolher o de Vitor Nuzzi. É o que dedica espaço nobre à produção artística de Vandré e o que mais depoimentos colheu. E mais fontes documentais consultou. O que melhor entende as divergências entre Vandré e os Tropicalistas (tema que resulta em enorme confusão conceitual no livro de Brito). O volume editado pela Kuarup traz reproduções (não com a qualidade técnica da Geração Editorial) de material de grande valor. Curioso notar que nenhum dos três livros tenha publicado a famosa foto de Vandré com Abreu Sodré, que foi capa de jornais em 1968 e ganhou relevo no livro de memórias do político paulista.

A lamentar que apenas um dos três livros (o de Jorge Fernando) tenha índice onomástico. Com tantos nomes citados, tantos generais, compositores, instrumentistas, empresários, amigos, fãs e familiares, voltar aos outros dois livros para dirimir qualquer dúvida é sinônimo de perda de tempo.

Não me chamem Vandré
• De Gilvan de Brito
• Editora Patmos
• 200 páginas
• R$ 45

Vandré – O homem que disse não
• De Jorge Fernando dos Santos
• Geração Editorial
• 278 páginas
• R$ 39,90

Geraldo Vandré – Uma canção interrompida
• De Vitor Nuzzi
• Kuarup Música
• 352 páginas
• R$ 64,90

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