Obra de Caio Fernando Abreu, escrita nos anos 1970 e 1980, é tão atual que ainda faz sucesso

Escritor está entre os autores brasileiros mais populares da internet quando se trata de citações

por Nahima Maciel 11/03/2016 12:30
MARCOS MENDES/ESTADÃO CONTEÚDO - 16/8/93
(foto: MARCOS MENDES/ESTADÃO CONTEÚDO - 16/8/93)
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e fosse vivo, o que Caio Fernando Abreu pensaria das redes sociais? Como encararia o fato de suas citações terem ultrapassado as de Clarice Lispector? E, sobretudo, como lidaria com o fato de que uma parte dessas citações são erroneamente atribuídas a ele? A jornalista e escritora Paula Dip gosta de imaginar quem seria Caio Fernando Abreu hoje, aos 67 anos, se não tivesse morrido em 25 de fevereiro de 1996. Ela também gosta de pensar como o amigo teria envelhecido. “Sempre me faço essa pergunta. Ele morreu jovem, aos 47 anos”, lembra Paula, que conheceu o escritor nos anos 1970, quando se iniciava no jornalismo e ele já acumulava alguns anos de experiência em veículos como Veja e O Estado de S.Paulo.


Caio Fernando Abreu pode ter morrido jovem, mas sua obra não perdeu o vigor. A universalidade, a rebeldia colhida na contracultura dos anos 1970 e a capacidade de tocar os leitores ao falar de temas existenciais fizeram do escritor nascido no interior do Rio Grande do Sul um autor pop atemporal. “Não apenas porque ele a escreveu na juventude, mas principalmente porque ela trata de temas universais que interessam a todos. Nesse sentido, o Caio não envelheceu, é um clássico, será sempre atual, não porque sua literatura tenha seguido determinadas regras de composição poética, dramatúrgica ou literária, mas porque sua obra tocou, como ele mesmo dizia, ‘no mais fundo de todos nós’. É esse mergulho na alma humana que faz da obra dele uma literatura sempre presente na vida da gente”, acredita Paula, autora de Para sempre teu, Caio F., uma reunião de cartas e depoimentos sobre o escritor.

Para lembrar os 20 anos da morte do autor, o livro de Paula vai ganhar uma reedição compacta e revisada, com o roteiro do filme homônimo, lançado em 2014 e dirigido por Candé Salles. Além disso, a jornalista prepara um livro de cartas trocadas entre Caio e Hilda Hilst, que será lançado pela José Olympio. Palestras, exposições e leituras também estão programadas em São Paulo para 12 de setembro, data em que Caio completaria 68 anos.

JORNALISMO O autor de Morangos mofados era um grande prosador, mas pouco se aventurou pelo romance. Caio preferia as crônicas e contos e escreveu apenas dois romances – Limite branco e Onde andará Dulce Veiga?. A atividade como jornalista era uma ponte para a prática da escrita e seu nome esteve estampado em todos os grandes veículos da imprensa brasileira. Ele foi repórter e cronista das revistas Manchete e Veja e colaborador dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Zero Hora e Correio do Povo, mas não era fã de jornalismo. Costumava dizer que a profissão o havia “estuprado até o último hímen”.

A pesquisadora Vanessa Souza, autora de uma tese de mestrado sobre a ligação entre a obra de Caio e a psicanálise, lembra que essa é uma faceta pouco conhecida do autor. “Ele falava que a experiência do jornalismo, para ele, era muito ruim porque ele era um grande escritor e queria viver só da literatura, mas era impossível na época”, diz Vanessa, que acaba de voltar de Londres, onde foi pesquisar os meses de exílio que Caio passou na capital inglesa.

O escritor passou um ano na Europa, em 1970, para fugir da perseguição do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Antes, se escondeu no sítio Casa do Sol, da amiga Hilda Hilst. Gay, libertário, sem medo de escrever sobre a repressão e nem um pouco de direita, acabou visado pela ditadura. Foi o vírus HIV, descoberto em 1994, que derrubou o escritor. Paula Dip conta que, quando descobriu a doença, o Caio que vivia reclamando da vida passou a ter pressa de viver. Na época, ele já havia publicado Morangos mofados (1982), Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e Onde andará Dulce Veiga? (1990), alguns de seus livros mais celebrados. Pequenas epifanias, uma reunião de crônicas bastante cultuada, sairia no ano da morte do autor, em 1996.

Para Jeanne Callegari, autora de Caio Fernando Abreu – Inventário de um escritor irremediável, publicado em 2008 e primeira biografia do escritor, o fato de o gaúcho ser campeão de citações é bom, mas é preciso que ele seja lido com mais seriedade. “Ele tinha muita coerência e consistência e está ocupando esse lugar cada vez mais, mas acho que ainda falta reconhecer. Com essa popularização dos memes, talvez tenha virado uma figura que talvez não fosse exatamente quem ele era, talvez precisasse ocorrer essa correção, olhar seriamente para os textos dele”, acredita.

Jeanne conta que era difícil achar os livros de Caio quando começou a pesquisa para a biografia, em 2004. A popularidade facilitou o acesso à obra e foi acompanhada, inclusive, de uma retomada de adaptações para o teatro. “A obra dele tem uma universalidade que não se perdeu com o tempo, ao contrário de outros autores que escreveram no mesmo período, durante a ditadura. O texto dele tem algo que os jovens de hoje conseguem se identificar muito, fala muito com eles, principalmente no que diz respeito à questão da sexualidade, do comportamento”, aponta Jeanne.

Três perguntas para...

Paula Dip

 

Qual o lugar da obra do Caio na literatura brasileira?
Caio Fernando Abreu é cria dos anos 1970: sua obra é atravessada pelos ventos da contracultura. Como um representante legítimo da geração baby boomer, ele assistiu a todas as revoluções dos meados do século 20, desde o homem na Lua, o amor livre, o movimento hippie, o sex, drugs and rock and roll, até a chegada do punk, dos computadores, da aldeia global de McLuhan. Ele foi uma testemunha do seu tempo, e previu um futuro que não viveu para ver. Cito o professor de linguística Paulo Cesar de Carvalho, que definiu com muita precisão o lugar da obra de Caio: “Woody Guthrie, guru de Dylan e dos músicos de protesto, escreveu em seu violão folk: ‘Arma de matar fascistas’. A máquina de escrever de Caio F. era uma arma contra toda forma autoritária de poder. Sua obra vista em seu conjunto é uma espécie de ‘barricada invisível’ contra toda forma de preconceito, de ódio, de intolerância: seus contos, suas novelas, suas peças, suas cartas, seus romances são um antídoto contra qualquer manifestação de tirania”.

Por que ele se tornou tão popular?
Caio Fernando Abreu fala do amor, da solidão, do sexo, da vida nas grandes cidades, da busca do sentido da vida com uma sensibilidade infinita. O que me preocupa é que algumas pessoas se contentam em ler e citar na internet frases e parágrafos curtos retirados de seus textos, fora do contexto da obra. Ele merece ser lido na íntegra, livro por livro, conto por conto, peça por peça. Quanto às fraudes, citações atribuídas a ele erroneamente, estas são inevitáveis. Virou moda citar Caio F., todo mundo adora exibir uma proximidade com ele. O que eu digo a essas pessoas é: leiam e releiam seus textos, suas cartas, a obra dele fica a cada dia melhor.

Por que, na sua opinião, o escritor desperta tantas paixões?
Sempre focado na emoção, Caio foi, como dizia Lygia Fagundes Telles, “o escritor da paixão”. Aristóteles afirmou que os jovens são revolucionários porque se jogam sem medo às paixões. Caio era assim, uma alma jovem. Ousado, viveu intensamente e dominava como poucos o instrumento da escrita que usou para revelar ao mundo seu mergulho existencial, as raras profundezas do ser, registrando a história de sua geração. Ele mesmo dizia que “escrevia sobre o amor, e sobre a falta dele.” E ao mesmo tempo era muito engraçado e irônico, tinha “um humor fútil” que todos adoravam.



“ Nada em mim foi covarde, nem mesmo as desistências: desistir, ainda que não pareça, foi meu grande gesto de coragem”

“Se algumas pessoas se afastarem de você, não fique triste, isso é resposta da oração: “livrai-me de todo mal, amém”

“Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado”

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