Raquel Rolnik expõe como a moradia se tornou produto submetido ao mercado financeiro

Em 'Guerra dos lugares', escritora argumenta que o projeto neoliberal tem imposto a propriedade privada individual como modelo único para a relação das pessoas com os lugares onde vivem

por Pablo Pires Fernandes 04/03/2016 12:30
ADEK BERRY/AFP 2013 11/6/13
Vista de Pluit Dam, em Jacarta, capital da Indonésia, um dos países visitados pela pesquisadora como relatora da ONU (foto: ADEK BERRY/AFP 2013 11/6/13 )
A constatação feita por Raquel Rolnik é contundente e certeira. A urbanista, uma das maiores autoridades sobre política habitacional nas cidades, defende que a moradia passa por um radical processo de mutação, no qual sua dimensão pública ou de direito humano está sofrendo um golpe ao ser transformado em ativo financeiro submetido ao mercado. Em Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia na era das finanças (Editora Boitempo), escrito a partir de sua tese de doutoramento, argumenta que o projeto neoliberal tem imposto a propriedade privada individual como modelo único para a relação das pessoas com os lugares onde vivem.

Em sua perspectiva, a autora sustenta que o Estado desempenha papel essencial no que chama de “financeirização da moradia”. “Esse processo é 100% conduzido pelo Estado, não existe sem essa participação. É um processo em que o mercado capturou e se mimetizou com o Estado. Não há mais diferença entre essas duas instâncias.”

A análise de Rolnik é ambiciosa, mas sua vasta experiência garante solidez à tese. Desde quando era estudante na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Fau) da Universidade de São Paulo (USP), nos anos 1970, dedicou-se a pesquisar o fenômeno da moradia nas cidades, estudando a formação das periferias de São Paulo. A partir de então, aliou “um trabalho mais acadêmico sobre arquitetura e urbanismo com um trabalho de assessoria na área de política urbana habitacional, ora assumindo um cargo no governo – em governo municipal, estadual e federal – ora através de consultorias a municípios”.

Em 2008, foi escolhida para ocupar o cargo de relatora especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas (ONU). Na função, visitou diversos países e aprofundou a pesquisa sobre o processo global de financeirização das cidades e seu impacto na população.

Antes disso, nos anos 1990, participou como consultora de política urbana na gestão do petista Patrus Ananias (1993-1996) na Prefeitura de Belo Horizonte. E elogia a mobilização cidadã que ocorre atualmente na capital contra a lógica “financeirista” e privatizante que detalha no livro. “Não é por acaso e nem é específico de BH a apropriação da cidade por parte da sociedade civil”, afirma.

Rolnik explica que houve um movimento importante de lutas urbanas no final dos anos 1970 e 1980, mas que ele “sucumbiu à lógica histórica da captura do Estado pelos negócios no campo urbano”. No entanto, aposta que “muita coisa vem por aí”, pois há um novo ciclo protagonizado pela juventude. “O movimento do direito à cidade tem como um de seus eixos importantes a ocupação do espaço público numa espécie de construção, na prática, daquilo  que é público. Ou seja: o público não é propriedade privada dos partidos e dos políticos, mas propriedade coletiva do cidadão. E os movimentos de ocupação do espaço público – seja através do carnaval ou das ocupações em torno da moradia – são justamente uma afirmação disso.”

A professora diz que os atuais movimentos, com suas particularidades em cada lugar, têm questionamentos em comum: Para que serve a cidade? Qual é a relação dos indivíduos com o lugar onde habitam?. E, apesar do diagnóstico sombrio, é otimista. Acredita que essa mobilização é capaz de afetar os processos decisórios das políticas públicas sobre a cidade, “que não podem ficar restritos à esfera do diálogo da política dos partidos com o mundo dos negócios urbanos”.

Quais são as bases do processo de financeirização da habitação e as origens dessa lógica?
Estamos falando da emergência do neoliberalismo como teoria e como prática. É a tese de que o mercado tem que dar conta de traduzir o acesso da maior parte da população à educação, à saúde, a seus elementos básicos da reprodução da vida cotidiana. E isso decorrente da dívida dos Estados e de uma reposta que seria da migração das dívidas dos Estados para as famílias. A dívida migra através do movimento de mercantilização dos serviços e bens públicos até então providos pelo Estado, como educação, saúde, moradia etc. E, para  entender esse modelo da financeirização como fenômeno global, a origem é a questão do endividamento dos Estados. Mas há também a existência de uma grande quantidade de capital excedente global procurando novos campos de investimento para saciar sua necessidade de rentabilidade. Estamos falando da necessidade de expansão do próprio capital financeiro, encontrando novas formas e espaços onde ele pode ser investido gerando valorização e remuneração. A terra, o imobiliário e o espaço construído passam a ser elemento fundamental desse circuito de valorização do capital.

Como a política de habitação social europeia, constituída dentro da perspectiva do Estado de bem-estar social (welfare state), se distingue da política norte-americana em relação à moradia?
Primeiro, é importante entender que os EUA, desde o New Deal (1933-1937), tinham uma política importante de apoio à habitação social – de construção de conjuntos habitacionais públicos, alugados de forma subsidiada por trabalhadores – que foi capaz de construir um estoque muito significativo de habitação pública de aluguel. Essa política começa a ser desmontada na Era Reagan (1981-1989), juntamente com o desmantelamento das políticas de welfare em quase todos os países da Europa. O exemplo da Margaret Thatcher (primeira-ministra britânica entre 1979 e 1990) é muito radical, porque, no final dos anos 1960, quase 40% do total do estoque de moradias no Reino Unido era público-social, baseado em aluguel. E isso é totalmente privatizado. Depois, com a queda do comunismo real, essa prática começa a ser disseminada por todos os países ex-comunistas. Posteriormente, esse modelo é replicado na experiência chilena, mexicana, brasileira, sul-africana e em vários países emergentes e não desenvolvidos. Essa mercantilização vai dar na crise de 2007. O produto dessa crise mostra os limites e os fracassos desse modelo, que procurou substituir o modelo do welfare – da provisão pública de moradia, com todos os seus problemas, diga-se –, pela ideia de que basta todo mundo ter um crédito acessível que todos terão acesso à moradia. Não é bem assim.

Depois da crise, como o sistema financeiro agiu em relação à moradia?
É impressionante o que está ocorrendo hoje com parte do estoque, porque houve uma superprodução de produtos imobiliários nos EUA, uma série de execuções de dívidas hipotecárias não pagas, de pessoas sem casa e casas vazias. O estoque residencial ganhou valor muito alto nos anos de bolha imobiliária e hoje se desvalorizou. Agora, os mesmos personagens que geraram o estouro da bolha – Wall Street, o mercado financeiro, etc. – estão constituindo fundos de investimento que compram esse estoque desvalorizado para especular com ele no futuro. O capitalismo faz isso. Ele destrói, desvaloriza e isso abre uma nova fronteira para um capital que não tem nenhum compromisso com a vida, nem com a produção, nem com a necessidade das pessoas. Ele só tem compromisso com a sua própria remuneração. Essa é a grande questão.

Como foi o trabalho de relatora das Nações Unidas e como isso afetou sua pesquisa?
Ao longo da relatoria fui percebendo o processo da financeirização e passei a me dedicar bastante ao tema. Foi muito marcante a missão nos EUA, uma das primeiras que fiz como relatora. Não apenas porque foi quando tive contato com essa questão da financeirização da moradia e seus efeitos, mas também porque a sociedade civil norte-americana é extremamente organizada. A missão nos EUA teve participação intensa da sociedade civil e vejo que aquilo que a gente começou a fazer no momento da missão reverbera até hoje. Foi muito importante conhecer situações que eu não fazia ideia, como a Indonésia ou o Cazaquistão. Acho que levar ao Conselho de Direitos Humanos (da ONU) a questão do direito à moradia nos países centrais foi uma contribuição singular da relatoria.

Porque foi exatamente onde essa lógica foi criada e se espalhou...
Exatamente. E é muito hegemônica. Não se trata apenas de uma política imperialista, de disseminação elaborada no Norte, mas, é que existe uma economia política de cada país, com interesses locais muito fortes, que se beneficiam dessas opções. Foi importante também a ida ao Haiti para perceber melhor a questão da terra, da relação com a propriedade privada, com a financeirização. Ao chegar lá, pensando no processo de reconstrução pós-terremoto, estava todo o sistema de cooperação internacional paralisado, sem conseguir reconstruir moradias porque a maioria do que foi destruído não tinha registro formal de propriedade. E, se não tem registro, como você vai construir uma casa que não é da pessoa?  Isso me permitiu desenvolver a discussão da relação da propriedade privada versus as outras formas de acesso à terra e o modelo global de financeirização da moradia urbana.

Você descreve o programa Minha casa, minha vida como reprodutor da lógica de financeirização da habitação. Por quê?
Porque para a moradia poder ser mercadoria capaz de circular plenamente nos circuitos financeiros internacionais, hoje, crescentemente, a única lógica é a da propriedade privada individual registrada. Todas as outras formas que exigem mediações mais completas, mais complexas, outras formas de relação com a terra, não têm essa possibilidade. E essa lógica se dá através da garantia da transformação das hipotecas em ativos financeiros, mas que, por meio de fundos imobiliários, permitem que você tenha um papel que corresponde a uma porcentagem da participação daquele investimento imobiliário, sem sua real materialidade. É por isso que estamos vivendo um processo global de fragilização das diferentes formas de vínculo com a terra, transformando a propriedade privada individual registrada no modelo único da relação do indivíduo com o território. Isso ocorre através de reformas fundiárias e de políticas públicas de promoção de propriedade individual, a casa própria. O Minha casa, minha vida é um exemplo disso. Embora isso seja vendido como a possibilidade mais segura de posse, observamos que, na crise imobiliário-financeira, ela é absolutamente insegura. As pessoas estão na rua, sem casa e sem poupança.

Quais seriam as outras formas de criar a relação com a terra e com a habitação?
Há experiências concretas implementadas e importantes de serem observadas neste momento de crise. Por exemplo, as formas cooperativas, em que a propriedade não é individual, mas é cooperativa, foram muito menos atingidas pela crise financeira hipotecária. No caso, as Communities Land Trust (CLT, Comunidades de Terra Comuns) nos EUA e em outros países da Europa. São propriedades cooperativas coletivas, desmercantilizadas, que podem ser vendidas sob consulta desse coletivo. São formas muito menos suscetíveis e menos inseguras. A Alemanha, particularmente, tem políticas de proteção ao aluguel que são importantes. E a crise financeira hipotecária na Alemanha atingiu muito menos as pessoas de baixa renda e mais vulneráveis. E, sobretudo, é dizer: Olha, não dá pra trabalhar com modelo único. Tem-se que trabalhar com uma diversidade de modelos: aluguel subsidiado, cooperativas, casa própria, costurando tudo isso. Não pode ser um modelo único, porque não dá certo.

Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças
• De Raquel Rolnik  
• Boitempo
• 424 páginas
• R$ 62
 

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