Nei Lopes e Luiz Antonio Simas lançam o 'Dicionário da história social do samba'

Livro narra a interação do gênero musical com múltiplas circunstâncias e a capacidade resistência e adaptação para sobreviver

por Severino Francisco 04/03/2016 12:30
Bruno VeigaDdivulgação
Nei Lopes: devoção à cultura popular e erudição convergem para a riqueza de matizes do dicionário do samba (foto: Bruno VeigaDdivulgação)
De
semba a samba, de samba de roda a samba do crioulo doido, de samba de breque a samba reagge, de samba de raiz a samba-rock, de marginalizado a símbolo da nacionalidade. A trajetória do samba é acidentada, tumultuada, ambígua e contraditória. Na história do gênero é possível depreender uma história não oficial do Brasil. É o que sugere a leitura de Dicionário da história social do samba, de autoria de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas (Civilização Brasileira). Ambos são catedráticos na cultura brasileira. Ney é sambista, ficcionalista e historiador autodidata; Luiz Antonio Simas é mestre em história social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e consultor do acervo Musical de Carnaval do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS).

É improvável que um dicionário seja lido do começo ao fim, em ordem alfabética, de A a Z. Mas esse é o caso da obra em questão, escrita com apuro que proporciona, a um só tempo, prazer e ilustração. Tem a precisão, a minúcia e o rigor que se exigem de um dicionário, mas com a vivacidade de uma crônica histórica.

Consultemos, por exemplo, o verbete-tema do livro, o samba. Os autores nos esclarecem que existem duas raízes etimológicas para a palavra de origem banto-africana. No Brasil dos tempos da colônia ou do império, significava dança de origem africana, cuja modalidade principal era a umbigada. Na língua cokwe, do povo Quioco, de Angola, samba tem o sentido de “cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito”. No idioma quicongro, palavra de grafia semelhante, sàmba, designa uma espécie de dança em que um dançarino bate contra o peito do outro.

Samba seria o verbo quimbundo semba, na acepção de “rejeitar” , “separar”, numa referência ao movimento físico produzido pela umbigada, característica principal das danças dos povos banto. No entanto, os autores consideram, também, que, na mesma língua existe a acepção do verbo semba, que é a de “galantear, agradar, encantar”, correspondente, no quicongo, a um verbo homógrafo e homófono, traduzido como “reverenciar, honrar”. Então, o étimo preferível pode ser o verbo quimbundo: semba, agradar, encantar, galantear.

PARTIDO-ALTO Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a modalidade mais tradicional do samba cantado é o partido-alto, fusão do samba de roda baiano com a cantoria do calango. É também um ponto de passagem entre o samba rural e o que se desdobraria em território urbano carioca a partir dos primeiros anos do século 20. “A expressão ‘partido-alto’ tem o sentido de ‘alta estirpe’, de ‘grupamento superior’, de ‘elite’, tanto que acabou por gerar o neologismo ‘partideiro’.”

A criação dos instrumentos da bateria é um aspecto revelador na história do samba. Eles são, em parte, um legado dos antigos cordões, mas a condição econômica dos primeiros sambistas pesou muito na opção das escolas pela percussão: “Os instrumentos de ritmo eram passíveis de fabrico caseiro, com barricas e pequenas caixas”, escrevem os autores do dicionário. “Sobre elas estendiam-se couros, que se esticavam em pequenas fogueiras de papel”.

No livro, o samba não é abordado a partir de uma suposta pureza do gênero. Pelo contrário: os autores revelam a interação intensa com o contexto político, a luta contra a repressão, as mutações de valores, as transformações nos costumes, a adaptação à emergência da cultura de massas e às novas tecnologias da comunicação. É uma história de resistência, negociações, recuos, avanços e astúcias. A definição do gênero, a Bossa-Nova, a cerveja, o Estado Novo, os anos de chumbo, os anos dourados, a Pequena África, a mídia, os instrumentos, as feijoadas, os instrumentos, a radiodifusão, as relações etnorraciais, o remelexo, a Riotur, as rodas de samba e o samba de breque são alguns dos recortes do dicionário.

Do verbete crucial África, podemos pinçar algumas origens do samba. Os núcleos da comunidade chamada Pequena África e dos migrantes do Vale do Paraíba enriqueceram as canções dos primeiros sambistas do século 20 com muitas recriações dos cânticos tradicionais bantos (congo-angolanos) e também oeste-africanos (jeje-nagôs): “Contendo quase sempre resíduos de línguas nativas do continente de origem, mesmo estropiados pelo tempo, esses cânticos constituem importante marco da africanidade no cancioneiro popular nacional”, comentam os autores no dicionário.

CONCURSOS A origem africana se manifestava no fato de, nos tempos pioneiros, as escolas de samba serem regidas pelos mesmos princípios vigentes nos terreiros do candomblé, nos quais o acesso à roda era definido pelas mulheres, as chamadas mães de santo. Os primeiros sambas-enredo versavam sobre o cotidiano dos compositores e sobre a relação com a natureza. No entanto, os autores observam que, “com a oficialização dos concursos, na década de 1930, passou a predominar, como eixo temático, a exaltação dirigida aos personagens históricos e efemérides exemplares dos currículos escolares”.

Mas o samba passou por vários movimentos de reafricanização e desafricanização. O ano de 1959 é um marco pela homenagem que a escola Acadêmicos do Salgueiro prestou ao pintor francês Debret. Era o pretexto para romper com a tendência a uma visão chapa-branca da história do país, ao revelar o cotidiano dos negros na época da colônia e do império. O enredo inspirou uma série de mergulhos na africanidade com tributos ao Quilombo dos Palmares, a Chica da Silva, ao Aleijadinho ou a Chico Rei.

A desafricanização pode ser constatada na nova onda de pagodeiros mauricinhos que imperou a partir da década de 1990, com uma embalagem pop. Os autores do dicionário sublinham que, apesar dos nomes evocativos da ancestralidade africana (Raça Negra, Negritude Junior), “seus repertórios não demonstravam compromisso com a africanidade sugerida em suas denominações ou qualquer relação com o que se identifica como consciência negra”.

O samba é um gênero extremamente plástico. Moldou-se,  adaptou-se e se reconfigurou para sobreviver às transformações da sociedade brasileira. Resistência é uma palavra crucial no vocabulário do samba. A história do gênero pode ser vista como uma sucessão de episódios de resistência, na visão dos autores. Ele enfrentou as condições mais adversas e, segundo José Ramos Tinhorão, “impôs sua cultura e sua forma de criar e se expressar. Com isso, “possibilitou que a força negra se manifestasse e penetrasse em cada canto da alma brasileira”. Chegou ao ponto de “subverter a cultura europeia” e resistir, como resiste até a atualidade, à indústria globalizada do entretenimento.

O que os autores oferecem não é apenas um dicionário neutro. É uma história crítica do samba em suas múltiplas e contraditórias interações. E essa mirada crítica ilumina não apenas a trajetória do gênero, mas também a história brasileira.

Dicionário da história social do samba
• Nei Lopes e Luiz Antonio Simas
• Civilização Brasileira
• 336 páginas
• R$ 55 e R$ 38 (e-book)

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