Convivência de negros e judeus na região da Praça Onze, no Rio, é tema de livro

Trabalho da mineira Beatriz Coelho Silva é baseado em depoimentos e pesquisa em arquivos

por Ângela Faria 05/02/2016 12:30
Arquivo da Biblioteca Nacional
Imagens da Praça Onze no início do século 20, onde circulavam imigrantes do Leste Europeu e afrodescendentes: relação entre as duas populações é repleta de ambiguidade (foto: Arquivo da Biblioteca Nacional)
Berço do carnaval, do choro e do samba, a Praça Onze, na Região Central do Rio de Janeiro, foi posta abaixo em 1942 para dar lugar à Avenida Presidente Vargas. Muito mais que mero logradouro, o mítico espaço onde as escolas de samba desfilaram pela primeira vez, na década de 1930, era um bairro. Ali moravam 110 mil pessoas quando o projeto de modernização da capital do país demoliu casarios, becos e ruas para erguer um bulevar à moda europeia com o propósito de ligar a orla à Zona Norte. Ex-escravos e seus descendentes, portugueses, espanhóis, italianos, judeus vindos da Europa e imigrantes do Oriente Médio formavam a comunidade de trabalhadores humildes, vizinha da zona boêmia e frequentada por compositores, cantores e artistas. Não é demais lembrar: havia mais gente ali do que se vê hoje em cidades mineiras como Araxá ou Lavras.

Aquele pedaço do Rio de Janeiro abrigou rica experiência multicultural, alerta a jornalista mineira Beatriz Coelho Silva no livro Negros e judeus na Praça Onze (Bookstart). Fruto de monografia apresentada na Universidade Federal Fluminense (UFF), o ensaio faz reviver o melting pot que o bota-abaixo de 74 anos atrás talvez não tenha soterrado. Há raros registros sobre a convivência de ex-escravos vindos da zona rural fluminense, da Bahia e de Minas com os judeus perseguidos na Europa que buscaram nova vida no Brasil. Entrevistados pela autora, descendentes de africanos e de exilados ofereceram apenas pistas desse convívio, enquanto livros de memórias silenciaram sobre a vivência compartilhada naquelas ruas.

Apagada no mapa, mas viva na memória, a Praça Onze não foi apenas berço do carnaval. Lá conviviam cultos afro-brasileiros (a região fazia parte da chamada Pequena África), lundus e festas populares negras com sinagogas, clubes e grêmios israelitas, além de jornais e publicações editados por aquela gente praticamente expulsa da Europa. Aliás, povo festeiro também: bailes promovidos por judeus chegaram a reunir 3 mil pessoas.

SILÊNCIO Intrigada com o silêncio sobre o encontro desses cidadãos castigados pelo preconceito, obrigados a viver fora de sua terra natal, a jornalista abraçou missão quase impossível. Não por acaso, o subtítulo de seu recém-lançado livro é A história que não ficou na memória. “Fatos escondidos não são esquecidos”, enfatiza Beatriz Coelho, sob inspiração das ideias do sociólogo austríaco Michael Pollack, especialista em história do tempo presente.

Com base em suas conversas com descendentes de negros e judeus moradores da Praça Onze, registros policiais, jornais da época, livros de memórias e estudos publicados tanto sobre o mítico berço da escolas de samba quanto a cultura afro-brasileira e a imigração judia, a jornalista montou um caledoscópio. Pistas preciosas levam à “memória subterrânea” não apenas do Rio de Janeiro, mas do Brasil plurirracial.

Na Praça Onze, havia pretos que sabiam falar ídiche. Jogos de azar irmanavam negros e judeus no drama de perder o pouco e suado dinheiro. Na Escola Benjamin Constant, dividiam as carteiras brasileirinhos e meninos vindos da Europa, que rapidamente aprendiam o português. Diz a lenda: comerciantes judeus financiaram os pioneiros desfiles das escolas de samba. Beatriz não acredita muito nisso, lembra que lojistas de todas as nacionalidades entravam na “vaquinha” foliã.

Aqueles imigrantes aferrados à Torá deviam mesmo gostar de samba. Prova disso é que o Clube Juventude Israelita promovia bailes de carnaval. Vindas do Leste Europeu e submetidas a horrores por cafetões nos navios que as trouxeram até o Rio de Janeiro, moças judias fizeram história na zona boêmia, ali pertinho. Eram as famosas polacas, que encantavam os “rapazes de cor” que frequentavam o mal-falado Mangue. Beatriz constatou que moços judeus, por sua vez, enrabixavam-se pelas mulatas.

Uma outra pista preciosa aguça a curiosidade sobre essa “vizinhança”. Pois não é que a mítica casa de Tia Ciata – onde o samba nasceu, diz a lenda – ficava numa rua encravada justamente no chamado “bairro judeu”, integrante do complexo da Praça Onze?
“Com mais de 70 anos entre a demolição da praça e hoje, que sentimentos e acontecimentos levaram ambos os grupos a silenciarem um sobre o outro?”, pergunta Beatriz Coelho. Fato é que, depois do bota-abaixo, os judeus se espalharam por outros bairros do Rio de Janeiro. Nenhum marco israelita existe por lá, enquanto o monumento a Zumbi dos Palmares, o Sambódromo e a Escola Municipal Tia Ciata reavivam a memória da Praça Onze negra.

MISCIGENAÇÃO O livro de Beatriz Coelho Silva se constrói sobre pistas e (oportunas) perguntas. Ao fechá-lo, vem a sensação de que é urgente aprofundar pesquisas, pois elas muito poderiam nos dizer sobre a decantada fama do Brasil como pátria da miscigenação. Tanto silêncio encobriria o preconceito racial? De alguma forma, seria consequência da discriminação imposta tanto a negros quanto a judeus? Será que aqueles pretos e brancos “se estranhavam”?

Com sua “história que não ficou na memória”, a pesquisadora, que mora em Juiz de Fora, deixa um desafio e tanto a ambas as comunidades, tão ciosas a respeito de seu passado. Beatriz conta que descendentes de judeus a têm procurado, depois do lançamento do livro. Não é exagero pensar que podem surgir novos relatos ou mesmo registros memorialísticos, guardados por famílias, que ajudem a compreender o tal “mistério” da Praça Onze. Beatriz torce por isso.

Quiçá o livro da mineira, viabilizado pela “vaquinha eletrônica”, seja uma obra aberta, com elucidativos capítulos a serem escritos. Enquanto isso, não custa lembrar: graças a um judeu, Frederico Figner, dono da Casa Edson, foi lançado, em 1902, o primeiro disco produzido em nosso país. Trazia o afro-brasileiríssimo lundu Isto é bom. Em 1916, a mesma Casa Edson voltaria a fazer história: gravou Pelo telefone, o primeiro samba registrado na terra do carnaval. Autor da proeza: Donga, legítimo bamba da Praça Onze.

NEGROS E JUDEUS NA PRAÇA ONZE
• De Beatriz Coelho Silva
• Editora Bookstart
• 104 páginas

Informações: www.livraria.bookstart.com.br/negrosejudeus
No Facebook: /negrosejudeusnapraçaonze
Contato com a autora: bcstoto@hotmail.com

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