Livro 'Entre o mundo e eu', de Ta-Nehisi Coates, aborda o racismo

Publicação propõe reflexão sobre a subjugação do corpo negro e sugere o uso do verbo como meio de combatê-lo

por Márcia Maria Cruz 22/01/2016 12:30
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(foto: Divulgação)
O livro Entre o mundo e eu, de Ta-Nehisi Coates, da editora Objetiva, embora trate do contexto estadunidense, joga luz à reflexão da questão racial brasileira. O autor organiza a escrita a partir de carta que envia para o filho, prestes a completar 15 anos. O recurso literário lhe permite retomar parte das memórias de infância, associando-as ao histórico da presença negra nos Estados Unidos, criando um híbrido de romance e reportagem. Ta-Nehisi, no entanto, não para no criterioso exame das relações entre brancos e negros, o que não seria pouco. Vai além ao mostrar que o processo de escrita pode ser um exercício virtuoso de pensar os rumos da humanidade. Não é à toa as diversas referências a Liev Tolstoi. Uma das inquietações do autor é encontrar, dentro da cultura negra, gênios da escrita com importância e valor equiparados ao escritor russo.

A escrita é o caminho pelo qual Ta-Nehisi, também jornalista e poeta, transcende a ideia de identidade como essência. Ele propõe um importante deslocamento para mostrar que certa delimitação da identidade negra costuma ser algo aleatório, ideia controversa nas discussões internas do movimento negro. O autor se esforça em evidenciar que os aspectos fenotípicos por si só não determinam um lugar, mas é a história e a herança social, política e cultural que dão o tom de ser negro nos Estados Unidos – e podemos afirmar que é o mesmo em qualquer lugar do mundo. A reflexão é dialética, ao problematizar que apesar de a negritude não ser algo imanente, o racismo impede o corpo negro de expressar sua plenitude. Como pontua, “ a raça é filha do racismo, e não sua mãe”.

O autor demonstra que o racismo é um sistema institucionalizado que aniquila os corpos, muitas vezes por meio de ação violenta da polícia e, de forma mais sútil, na maneira como negros e brancos são socializados. Aos primeiros é forçosamente dado o horizonte de ser um suspeito permanente, o que tira a espontaneidade e a liberdade dos corpos negros desde a infância e determina como agirão ao longo de toda a vida. Aos segundos é dada a certeza de que o mundo – organizado sob um paradigma de branquitude – foi feito para ele dominar.

Ta-Nehisi Coates nasceu num gueto em Baltimore, há 40 anos, e vem de uma linhagem de luta e resistência. Filho de combatente Pantera Negra, o autor reconstrói a relação de subjugação da cultura negra à branca apresentando filosoficamente as falhas de um projeto de humanidade que não entenda a atrocidade do racismo. Sua inquietação o leva às bibliotecas, que o leva à África. No meio do caminho, o jornalismo é adotado como arma para denunciar violações e bússola para explorar o mundo. E é por meio dele que, inexoravelmente, o autor “desvenda as leis que restringiam o corpo”. O jovem autor é correspondente da revista The Atlantic, tornando-se intelectual de relevância nos EUA. A popularidade de Ta-Nehisi fez com que desse nome a um super-heroi em série de quadrinhos para a Marvel.

Ao longo da narrativa, ele nos conduz a pensar sobre o sonho, alusão ao way of life americano, mas na perspectiva de quem é negro na dita maior democracia mundial. Ao falar ao filho, Ta-Nehisi demonstra como conseguiu que seu corpo, sequestrado pela herança da escravidão, fosse liberto. Ele deixa claro que a escravidão ainda ecoa para todos os negros, enquanto não puderem sair às ruas com a certeza de que não serão alvo da polícia. A narrativa é, de alguma forma, pessimista ao apontar que a sociedade americana foi erigida na subjugação de negros aos brancos. A saída, porém, que ele aponta para o filho é o uso cortante do verbo, é a possibilidade de ressignificar o mundo à volta. A parte mais comovente é quando ele fala dos escravos, retomando o que cada um fazia antes de serem retirados da África. Não diz apenas das linhagens majestosas de tantas etnias, mas mostra ações ordinárias, como cultivar flores.

O livro fala ao meu corpo – se aqui entendemos que a divisão de mente e corpo não existe na cosmovisão africana – sobremaneira por eu ser, como o autor, jornalista, negra e ter nascido em uma periferia brasileira. Os relatos de Ta-Nehisi de genocídio de jovem negros não são diferentes do que presenciei ao longo da minha vida. Coincidentemente, no período em que terminava a leitura, visitei o Cemitério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro, o que me deu a justa ideia do que foi a escravidão e as consequências dela para nós, negros. No cemitério, foram enterrados, ou melhor dizendo, empilhados, como indigentes mais de 6 mil negros. A narrativa de Ta-Nehisi permite olhar para a experiência brasileira – o Brasil foi o último país a dar fim ao tráfico de escravos – e entender como é difícil libertar o corpo negro. Olhar para aquele cemitério e entender que o “Tolstoi” da cultura negra é escrito pelos corpos que resistiram a esse genocídio, brincam e gingam no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Baltimore.

Entre o mundo e Eu

De Ta-Nehisi Coates
Editora Objetiva
150 páginas
R$ 34,90

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