'Palavra de roteirista' reúne entrevistas com profissionais do primeiro time do audiovisual brasileiro

22/01/2016 12:30
Alexandre Lima/DivulgaÇÃo
O personagem Capitão Nascimento, vivido por Wagner Moura, ganhou complexidade em Tropa de elite 2 (foto: Alexandre Lima/DivulgaÇÃo)

Utilizar palavras para formar cenas que serão convertidas em imagens. Eis a destreza exigida de um roteirista, profissional em ascensão no Brasil desde a consolidação da indústria audiovisual. Muitos escritores foram seduzidos pelo ofício e outros cineastas também passaram a se dedicar com maior frequência à atividade, ainda mais depois do incremento da produção voltada para a televisão e internet. Mas o que pensam os homens e mulheres que passam semanas, meses, às vezes anos, em busca de palavras e são bem menos conhecidos do que os que estão à frente e atrás das câmeras? As reflexões desse time estão contidas no livro Palavra de roteirista, que acaba de ganhar nova e ampliada edição.
Arquivo Estado de Minas/Divulgação
José Wilker, Lucélia Santos e Milton Morais na primeira versão para o cinema de Bonitinha mas ordinária (foto: Arquivo Estado de Minas/Divulgação)

O autor, Lucas Paraizo, é formado em roteiro pela Escuela Internacional de Cinema y Televisión de Los Baños, em Cuba. Roteirista da Rede Globo, ele estudou jornalismo na PUC do Rio de Janeiro. Os depoimentos reunidos por Paraizo foram originalmente compilados para o projeto Arquivo Plano B, idealizado por Tayla Tzirulnik, com diferentes pontos de vista dos diretamente envolvidos na realização cinematográfica, e deram origem ao documentário O roteirista. Entre os incluídos estão veteranos como Doc Comparato e Euclydes Marinho, e nomes que se destacaram mais recentemente, como Carolina Kotscho, de 2 Filhos de Francisco. Muitos dos entrevistados são conhecidos pelo trabalho como cineasta, a exemplo do chileno Jorge Durán e do gaúcho Jorge Furtado. Outros tantos fizeram a transição do cinema para a televisão, trabalhando atualmente como roteiristas contratados de emissoras de TV – caso dos escritores Marçal Aquino e Fernando Bonassi, e também de Paulo Halm, um dos autores da novela Totalmente demais. As perguntas se repetem, como se constassem em um formulário, e a utilização da fórmula deixa o resultado final um pouco repetitivo. Mas a restrição se torna secundária diante da relevância da inédita reunião de opiniões dos integrantes do primeiro time do audiovisual brasileiro contemporâneo.
Lisa Graham/DivulgaÇÃo
Flores raras, com Gloria Pires e Miranda Otto, aborda a relação entre Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop (foto: Lisa Graham/DivulgaÇÃo)

Depois da publicação em 2011, a nova edição de Palavra de roteirista inclui um novo depoimento, do pernambucano George Moura (Getúlio, Amores roubados, O rebu), que comenta: “Não dá para ser um analfabeto da gramática das linguagens audiovisuais”. “O cinema provou ser um bom negócio e a corrida por boas histórias está instaurada”, analisa Lucas Paraizo na introdução da segunda edição. “É hora de lembrar que, para manter uma economia criativa sólida, duradoura e que se faça recordar no futuro, é preciso combinar intuição e rigor na narração cinematográfica”, aponta Paraizo. No prefácio, o cineasta José Padilha, em texto recheado de frases incisivas, decreta: “O roteiro é fundamental, mas não é definitivo. Um filme não é uma casa, o roteirista não é um arquiteto”. Diretor dos dois Tropa de elite, Padilha faz a ressalva para lembrar que, na feitura de uma obra cinematográfica, são muitas as variáveis, “e por isso mesmo impossíveis de serem especificadas e controladas”. Mesmo assim, sentencia: “O melhor amigo do diretor é um bom roteiro”.
Conspiração Filmes/Divulgação
Fernanda Montenegro e Luiz Melodia em Casa de areia, drama com roteiro de Elena Soárez (foto: Conspiração Filmes/Divulgação)

Bráulio Mantovani
De Cidade de Deus (2002), Última parada 174 (2008), Tropa de Elite (2007), entre outros

Tropa de Elite
“Tropa de elite foi escrito originalmente para um personagem ser o protagonista e na montagem a gente mudou de ideia. Esse processo é muito parecido com o de roteiro, são coisas muito próximas. Você organiza a narrativa no roteiro e, de certa forma, reorganiza na montagem. O que aconteceu foi um pouco falha do roteiro, já que a gente não percebeu que o protagonista era passivo demais. Além do mais, houve outra coisa chamada Wagner Moura. Ele pegou um personagem menor, mas é tão bom ator que roubou o filme.”

Tropa de Elite 2
“O Tropa de Elite 2 foi a chance, pelo menos para mim, como roteirista, de aprofundar e trabalhar o personagem do capitão Nascimento. Dramaturgicamente, no roteiro do primeiro filme, o capitão Nascimento não tinha uma trama interessante. Ele começa e termina igualzinho, não se transforma. O Tropa 2 foi a chance de me redimir perante o Nascimento, fazê-lo protagonista de verdade.”

Carolina Kotscho
De 2 Filhos de Francisco (2005), Flores raras (2013), Não pare na pista (2014), entre outros

“Ainda sobra muito diálogo no filme brasileiro. Não sei se é cultural, se vem da novela, se vem do rádio, não saberia explicar. Mas é tão irreal...
A gente não passa o tempo inteiro se explicando por meio do diálogo. Ninguém filosofa o tempo todo. Em um roteiro, é preciso respeitar o universo da história. Eu não posso pôr tagarelando um casal que nasceu no interior de Goiás na década de 1960. Essas pessoas não falam, são monossilábicas. Você tem que traduzir o diálogo em ações.”

Doc Comparato
De O bom burguês (1979), O beijo no asfalto (1981), Bonitinha mas ordinária (1981), entre outros, e autor do livro Da criação ao roteiro: teoria e prática

“Adaptar é um dos processos mais lindos que existem. Existem vários níveis de adaptação. Você pode se inspirar, se basear ou recriar o mundo original. Sempre digo que, quando adapto, pego toda a obra original e o autor e, durante uns três meses, leio tudo sobre ele e tudo o que ele escreveu. Eu me transformo naquele autor. Sou uma espécie de Zelig. Só que aí, quando vou adaptar, jogo aquilo tudo fora, porque eu já sou ele”.

Elena Soárez
De Eu tu eles (2000), Casa de areia (2005), A busca (2011), entre outros

“A pesquisa se impõe. Se me mandarem fazer um filme sobre um tema científico, por exemplo, eu preciso de pesquisa porque, a rigor, não sei nada sobre isso. Para escrever o filme Casa de areia, passei um ano tentando, em vão, entender a Teoria da Relatividade. Tive até professor particular de física e nada resolvemos. Pesquise sempre que houver necessidade. Mas saiba que às vezes a pesquisa afasta o roteirista do coração da história e ele pode acabar perdendo o que quer realmente contar.”

Euclydes Marinho
De Bar Esperança (1985), Primo Basílio (2007), Se eu fosse você 2 (2009), entre outros

“Na maioria das vezes, sou um escritor de aluguel, então recebo encomendas. E as encomendas vêm mais ou menos definidas: ‘eu quero uma comédia’ ou ‘eu quero um melodrama’. O Daniel Filho, por exemplo, com quem sempre trabalho, queria fazer o Primo Basílio para o cinema com um toque melodramático, com pitadas de Nelson Rodrigues. Então, as pessoas encomendam e a gente tenta suprir a demanda.”

Fernando Bonassi
De Carandiru (2003), Cazuza: o tempo não para (2004), Lula: o filho do Brasil (2009), entre outros

“Acho a presença de um ator diante da câmera muito mais impactante do que o que ele fala. Mas a verdade é que eu também não tenho um método narrativo para ensinar. Eu li todos os manuais e desprezo 95% deles porque não funcionam no meu cotidiano de trabalho como roteirista sul-americano.”

George Moura

De Linha de passe (2008), Getúlio (2014), O rebu (2015), entre outros

“Acho a pesquisa fundamental. Mas não apenas a pesquisa teórica. Para escrever Amores roubados, por exemplo, eu precisei voltar ao sertão, visitar aquelas locações, respirar aqueles ambientes. Para escrever O canto da sereia, fui a Salvador, frequentei terreiros, vi de perto o carnaval de lá e até entrei em um trio elétrico – cenário fundamental da história. Como minha formação é jornalística, há um repórter dentro de mim que me alimenta para a escrita da dramaturgia. Há um caráter documental que precede a escrita e que às vezes se mistura com ela.”

Hilton Lacerda

De Baile perfumado (1997), Amarelo manga (2002) e Tatuagem (2013), entre outros

“Gosto muito de descontextualizar algumas frases. Em Amarelo manga, por exemplo, tem muita literatura na boca dos personagens. Ninguém sabe, mas o filme está cheio de frases de Flaubert, Balzac e Graciliano Ramos colocadas em contextos completamente absurdos.”

Jorge Durán
De Gaijin (1980), A cor do seu destino (1987), Proibido proibir (2007), entre outros

“Eu não tenho medo de clichê. Um clichê só acontece quando um evento já ocorreu e quase todos já ocorreram e se banalizaram. Da prisão de um homem à separação de um casal. Ora, desde Adão e Eva que os casais se separam! Então, conforme você trata os personagens e conforme eles resolvem suas questões é que sua história pode se transformar em clichê ou não.”

Jorge Furtado

De Houve uma vez dois verões (2002), Benjamim (2003), Boa sorte (2014), entre outros

“O roteirista é um ser de dois mundos: o mundo da leitura e o mundo do cinema. É fundamental que o roteirista seja um leitor, porque é muito pouco provável que alguém saiba escrever sem ler. Mas não adianta só gostar de cinema. Às vezes, é melhor esquecer um pouco o cinema e se dedicar à leitura. Leia Machado de Assis e pense como filmá-lo, mesmo sendo muito difícil. Digo isso porque a leitura produz imaginação, ao contrário do cinema, que produz imagens. E ler é um bom passo para transformar ideias em imagens.”

Luiz Bolognesi
De Bicho de sete cabeças (2001), Chega de saudade (2007), Amazônia (2013), entre outros

“A construção dos personagens, para mim, é o mais difícil e o mais importante do roteiro. E é isso que eu tenho perseguido em meus trabalhos. Acho que o cinema brasileiro é tradicionalmente um cinema de peripécias e não de personagens. O cinema argentino, por exemplo, é muito mais um cinema de personagens do que de peripécias. Os roteiros brasileiros são mais focados em tramas do que em atmosferas verticais dentro dos personagens – o que não é mérito nem demérito.”

Marçal Aquino
De Os matadores (1997), O invasor (2002), O cheiro do ralo (2006), entre outros

“Costumam dizer que minha literatura é muito cinematográfica. Às vezes, acreditam que é por conta da minha experiência como roteirista. Mas lamento decepcioná-los e diria o seguinte: eu entrei no cinema pela primeira vez aos 6 anos de idade. Mesmo sem saber ler, fiquei apaixonado por aquilo. Então, evidentemente, o cinema influenciou minha leitura, mas não pelo fato de eu trabalhar como roteirista, e sim porque encontro nele uma linguagem fascinante.”

Marcos Bernstein
De Central do Brasil (1998), Chico Xavier (2010), Somos tão jovens (2013), entre outros

“É muito difícil fazer um roteiro bom. Tenho a seguinte teoria: fazer um bom roteiro é mais difícil do que fazer um bom filme. Por outro lado, fazer um roteiro excelente é mais fácil que fazer um filme excelente. Para o filme ser excelente, o diretor também depende que 40 pessoas sejam excelentes ao mesmo tempo.

Às vezes, você tem ótimas histórias, muito bem contadas, mas elas não se conectam com o espectador. Vou exemplificar com dois filmes que fiz, Terra estrangeira e Central do Brasil. São dois filmes muito benquistos pelo público. Mas é muito evidente que tipo de público gosta mais de um ou de outro. O pessoal do mundo do cinema, de um modo geral, gosta mais de Terra estrangeira. É um filme que tem uma história próxima e com uma linguagem que diz respeito a esse tipo de espectador. Já Central do Brasil é muito mais querido em um grupo que não é do cinema. Isso vem muito da história e da forma como ela é contada.”

Paulo Halm
De Pequeno Dicionário Amoroso (1997), Cazuza: o tempo não para (2004), entre outros

“Cada filme é uma porta que se abre e se intercomunica com outra informação que está lá no seu inconsciente. Quanto mais filmes você assiste, melhor a sua formação. O roteirista deve saber que, primeiro, ele está escrevendo um texto. Ele está trabalhando em um filme e o que importa é o filme. Por isso, ele tem que estar disposto a se desapegar do que foi escrito. O importante é o filme ficar bom”.

Palavra de roteirista
. De Lucas Paraizo
. Editora Senac
. 394 páginas
. R$ 49

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