Vidas em trânsito

'Cartografias contemporâneas - Espaço, corpo, escrita' mapeia fenômeno da diáspora, do exílio, das diferenças culturais e da identidade a partir da literatura feminina produzida em países periféricos e dos conflitos vividos por seus personagens

por Ângela Faria 08/01/2016 12:40
Morteza Nikoubazl/reuters - 2/4/07
(foto: Morteza Nikoubazl/reuters - 2/4/07)
Sissie deixa Gana e vai estudar na Alemanha. Clare se muda da Jamaica para os Estados Unidos. Nazneen troca Bangladesh pela capital inglesa, enquanto Jasmine deixa a Índia em busca de vida nova nos EUA. Todas elas são personagens de romances escritos a partir dos anos 1970 por autoras de países considerados periféricos, testemunhas de mudanças socioeconômicas e culturais geradas pelo movimento migratório que se tornou marca registrada da sociedade contemporânea.

Em Cartografias contemporâneas – Espaço, corpo, escrita (7Letras), Sandra Regina Goulart Almeida analisa a obra de autoras que retratam o chamado “século do grande experimento imigrante”. Vice-reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora de estudos literários da Faculdade de Letras dessa instituição, a pesquisadora busca oferecer uma reflexão sobre o deslocamento espacial e o trânsito cultural como marcas da contemporaneidade.

“Hoje, mais do que em qualquer outro momento histórico, as pessoas se movem com mais rapidez e mais intensidade por espaços geográficos e geopolíticos. Entre esses movimentos espaciais destacam-se as diásporas contemporâneas, que adquiriram um sentido mais amplo do que o original”, afirma Sandra Almeida. Uma das características dessa nova diáspora é a presença das mulheres, que, além de participar desse movimento, refletem e escrevem sobre ele. “Ao iniciar a pesquisa que deu origem ao livro, queria descobrir sobre o que, de fato, elas escrevem, como esse espaço contemporâneo de trocas culturais é vivenciado por elas e, principalmente, como as questões de gênero aparecem em suas obras”, diz.
Três aspectos marcam fortemente a obra das autoras selecionadas por Sandra: o lar, o corpo feminino e a cidade cosmopolita. Sissie, a protagonista de Our sister Killjoy, de Ama Ata Aidoo – escritora de Gana que viveu nos EUA e voltou ao país de origem –, critica os conterrâneos que estudam na Europa, tornam-se “sem pátria” e, seduzidos pelo Primeiro Mundo, recusam-se a voltar à África para ajudar a construir uma nova sociedade. Em No telephone to heaven, a jamaicana Michele Cliff, que mora nos EUA, conta a história de Clare e sua família. A moça aprende a se “camuflar”, tornando-se “invisível” para se misturar aos norte-americanos com quem convive. Quando se muda para Londres, redescobre a ancestralidade africana e volta à Jamaica para lutar – e morrer.

Personagem criada por Monica Ali, escritora nascida em Bangladesh e radicada na Inglaterra, a bengali Nazneen, protagonista do romance Brick Lane, muda-se para Londres para acompanhar o marido e aprende ali, na cidade cosmopolita, a ser dona do próprio destino. Sustenta a família, rejeita o amante descendente de conterrâneos que vê nela a mulher muçulmana ideal. Nazneen, a adúltera, faz do próprio corpo elemento de transgressão, enquanto outras personagens o transformam em bandeira política. Diante da repressão a islamitas depois dos atentados de 11 de setembro em Nova York, elas trocam o véu hijab pela burca. Completamente cobertas de preto, circulam por ruas europeias, desafiando os ocidentais que demonizam a cultura do islã.

Sandra Almeida analisa também a obra da indiana Bharati Murkherjee, que viveu no Canadá e mora nos EUA. No romance Jasmine, ela conta a história da mulher que se desdobra num “vaivém de identidades”: é Jyoti para sua família pobre na Índia; Jasmine para o marido; Jazzy para a mulher que a acolhe nos EUA; e Jase para a família para quem trabalha em Nova York. Finalmente, assume-se como Jane em sua nova pátria.

SEGUNDA GERAÇÃO Polos cosmopolitas – Nova York, Londres e Roma – são também “personagens” de romances protagonizados por filhos de imigrantes. Sandra Almeida analisa a presença da chamada segunda geração da diáspora na literatura contemporânea. É o caso de Pilar, protagonista de Dreaming in Cuban, de Cristina Garcia, cubana radicada nos EUA; e de Gogol e Moushumi, criados pela indiana Jhumpa Lahiri para o livro The namesake.

Em Terra descansada, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, Lahiri conta a história de filhos de indianos criados em Massachusetts, nos EUA, que só conseguem estabelecer um verdadeiro vínculo afetivo em Roma, bem longe de casa e do legado cultural dos pais. A metrópole, lembra Sandra Almeida, oferece excesso, prazer e, por outro lado, isolamento e anonimato – essências do “não lugar”. Justamente esse “não lugar” permite ao casal um verdadeiro encontro, embora fugaz.

Exílio, emigração e diáspora são fenômenos antigos na história da humanidade. Porém, lembra Sandra Almeida, as narrativas contemporâneas destacam atores antes invisíveis ou silenciados, que chamam a atenção para questões inerentemente políticas ao descortinar um mundo no qual sujeitos em trânsito habitam um entrelugar conflituoso, por vezes liberador e produtivo ou, por outras, altamente repressivo e coercivo.

BRASIL O novo livro da professora da UFMG não aborda livros brasileiros. O foco da pesquisa é a descolonização ocorrida nas colônias inglesas, quando houve imigração intensa em direção às antigas metrópoles ou a outras nações do Primeiro Mundo.

No caso brasileiro, observa Sandra Goulart, há especificidades históricas que devem ser tratadas distintamente. Escritores de nosso país tendem a priorizar trânsitos contemporâneos e a imigração que veio para cá. Poucos abordam a emigração do Brasil para o exterior. “Nesse sentido, a reflexão sobre uma possível diáspora brasileira ainda é recente e um tanto incipiente”, explica. Mas cita a antologia publicada pela Mazza Edições em 2013, organizada por Else Vieira, que fala da poesia da diáspora brasileira e de autores que moram no exterior: Alessandra Rebello, Antônio Massa, Natan Barreto, Ricardo Sternberg, Vera Lúcia de Oliveira e Vilmara Bello, entre eles.

“Um exemplo mais conhecido, no campo da ficção, é o do brasileiro Sergio Kokis, que reside no Quebec, Canadá, e escreve romances sobre sua experiência de imigrante, tendo sido nomeado, em mais de uma ocasião, para receber o Governor General's Awards, prestigioso prêmio canadense de literatura”, conclui a autora de Cartografias contemporâneas.

ENTREVISTA/ Sandra Regina Goulart Almeida

Em que medida as autoras abordadas em seu livro nos ajudam compreender o mundo dos chamados “movimentos de trânsitos contemporâneos”?
Não resta dúvida de que essas escritoras trouxeram reflexões importantes sobre os movimentos de trânsito e as diásporas contemporâneas, em especial sob a perspectiva das mulheres. Pude observar, por exemplo, que o questionamento dos papéis de gênero nesses novos espaços que as protagonistas dos romances passam a ocupar é uma questão presente em praticamente quase todas as obras analisadas. Há, assim, um enfoque marcante na experiência das mulheres e de seus corpos na interação com o novo espaço, com a cidade cosmopolita, e o lar deixado para trás.

Por meio da literatura, vêm sendo quebrados paradigmas e preconceitos em relação à visão do chamado Primeiro Mundo a respeito do cidadão de países ditos “periféricos”?
Com certeza. A literatura como produção cultural que representa e constrói um determinado mundo tem o papel muito importante de nos colocar diante do outro que é diferente de nós, de outras histórias de vida, de outras realidades e, ao fazer isso, nos faz questionar padrões que foram construídos e aceitos sem serem questionados. Nesse sentido, as obras dessas escritoras colocam em evidência um mundo sob a perspectiva delas e nos faz refletir sobre posições que muitas vezes são assumidas, mas que revelam uma forma restrita e estereotipada de conceber o mundo.

Você diz que o imigrante se tornou um fetiche. Qual o “perigo” de abordagens estereotipadas a respeito dele, sempre associado ao exótico e ao “diferente”?

Esse é um perigo ao qual devemos estar todos atentos. Termino meu livro justamente com essa reflexão. É muito fácil simplesmente deslocar o enfoque dado a essas questões do trânsito contemporâneo, do silenciamento e o apagamento para a visibilidade do exótico. Hoje, há um número considerável de obras literárias que tratam da temática da imigração e da diáspora. Se, por um lado, esse é um fato a ser celebrado, por outro, temos que ter cuidado com a avidez desse mercado editorial, que, por vezes, quer vender livros a todo custo e, assim, constrói uma imagem estereotipada do produto a ser vendido que acaba por endossar a visão preconceituosa que muitos têm dos imigrantes, em vez de questionar esse estereótipo, o que, na maioria das vezes, os autores e autoras querem ao produzir seus textos.

A literatura da diáspora pode nos ajudar a compreender o atual momento histórico, sobretudo pós-atentados de 11 de setembro e, mais recentemente, a tragédia de Paris?

A literatura nos ajuda a refletir sobre o momento contemporâneo e a entender um pouco os fatores históricos que levaram a esse acirramento das relações humanas e das relações entre países, mas não nos consola diante de fatos tão bárbaros. Escritores e escritoras que tratam, mesmo indiretamente, desse assunto se mostram tão estarrecidos quanto nós. Em um dos romances que analisei, traduzido aqui no Brasil como Um lugar chamado Brick Lane, Monica Ali mostra como um grupo de muçulmanos de um bairro londrino, que começa a se organizar depois do 11 de setembro, vai aos poucos se radicalizando. As mulheres começam a usar o hijab e terminam por adotar a burca em uma reação em cadeia diante da intolerância das pessoas e da discriminação que começam a sofrer. Diante dessa cena, compreendemos um pouco a complexa situação do momento atual, mas ficamos ainda mais incomodados por saber que ela revela algo que não podemos dimensionar ou resolver.

Essa literatura nos ajuda a prestar mais atenção nos chamados “países periféricos”? Geralmente, há comoção quando um atentado ocorre em Paris ou Nova York. Mas o mesmo não se dá quando há atos violentos na África, por exemplo. Esses livros ajudam a ligar o nosso “radar”?

Esses livros, acredito, nos tornam leitores mais críticos das relações entre os países ditos do Primeiro Mundo e aqueles designados como países periféricos. Eles nos mostram, como bem coloca a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o perigo de uma história única, e a importância de estarmos atentos a outras vozes e outros sujeitos.


CARTOGRAFIAS CONTEMPORÂNEAS: ESPAÇO, CORPO, ESCRITA

. De Sandra Regina Goulart Almeida
. 7Letras
. 220 páginas
. R$ 47

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