'Mal-entendido em Moscou' narra dilema de um casal que se conscientiza do próprio envelhecimento

No livro a escritora Simone de Beauvoir alterna vozes feminina e masculina

por Maria Thereza da Silva Pinel 08/01/2016 12:30
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(foto: Divulgação)
André e Nicole, casal sexagenário de professores aposentados, viajam pela segunda vez para a União Soviética, ao encontro de Macha, filha do primeiro casamento de André. Ambos pensam no passado, saudosamente, e estão em crise existencial, causada pela consciência do envelhecimento, de modo que a falta de comunicação os faz passar, também, por uma crise conjugal – sendo este o maior mal-entendido ao qual se refere o título –, narradas pelo ponto de vista alternado entre marido e mulher. É com esse fundo que Simone de Beauvoir traz à tona, mais uma vez, novas perspectivas sobre temas universais.

O que aparenta ser mais um livro de drama romântico se mostra muito além disso, como é de costume das produções da autora, o que dá para ser percebido logo no início: “Ela tratava o pai como você e Nicole como senhora. Isso era normal e ao mesmo tempo estranho. (...) Mas, quando um homem leva suas malas, é porque você é uma mulher; se é uma mulher quem as leva, é porque ela é mais jovem que você, e você se sente uma idosa”. A trama central do envelhecimento, por si só, traz abordagem diferente, direta e sensível, desmitificando, de modo explícito, os discursos otimistas do envelhecimento, mostrando agonias e pensamentos mais realistas sobre o tema.

Misturadas às lembranças e reflexões dos personagens, questões femininas (e feministas), sociais e políticas são bem exploradas na obra, que se mostra um forte testemunho da situação da União Soviética em meados de 1960, colocada principalmente em discussões entre André e Macha, contrapondo a decepção de alguém que idealiza um socialismo puro e o orgulho de uma jovem criada em um ambiente com igualdade de gêneros.

Levando em consideração a técnica literária de Beauvoir, a alternância de vozes na narração não é a novidade nesse livro, mas sim o tom mais intimista e intenso e o modo honesto com o qual a escritora explora o interior feminino e masculino, deixando de lado estereótipos comuns a esse tipo de produção. Ver os dois lados desse mal-entendido causa certa angústia no leitor, que nota, ao longo do livro, que os dois querem a mesma coisa um do outro, mas as crises nas quais se encontram não permitem que eles percebam isso. “Um casal que continua porque começou: seria esse o futuro que os aguardava? De amizade, de afeição, mas sem uma verdadeira razão para viver juntos: seria assim?”

O problema da falta de comunicação é colocado de maneira não óbvia e, ao mesmo tempo, muito bem-sucedida, pois qualquer um se identifica com essa situação, já que esse é o principal motivo de muitos desentendimentos entre familiares, amigos e casais. É com maestria e lucidez que Simone de Beauvoir começa e termina seu livro com o tema da comunicação, deixando claro a que veio.

Apesar de escrita há cerca de 50 anos, a obra é atual não só na temática, como se enquadra na tendência contemporânea da autoficção, uma vez que a escritora francesa se inspira na relação e nas viagens à União Soviética que fez com o marido e filósofo Jean-Paul Sartre. Além disso, a personagem Macha também é baseada em uma mulher que cruzou o caminho do casal nessa viagem, de modo que os sentimentos de Nicole em relação à filha de André são a reprodução dos sentimentos da própria autora – deixando tudo ainda mais emocionante e real.

É um livro relativamente curto e de fácil leitura. Traz, no entanto, questionamentos existenciais em todas as páginas, esteja o leitor na faixa etária dos personagens ou não. Essa riqueza pede certa entrega e proporciona duras reflexões durante a leitura. Isso, claro, se conseguir vencer a aflição de saber como será resolvido o mal-entendido do casal. Essa experiência é o que se deve esperar das obras de Beauvoir, e com esse inédito traduzido por Stella Maria da Silva Bertaux e trazido pela editora Record não seria diferente. Para quem procura conhecer, ou mesmo aprofundar-se no estilo da escritora e filósofa francesa, Mal-entendido em Moscou cumpre bem o seu papel, de modo instigante e prazeroso.

Maria Thereza é estudante de letras na UFMG e pesquisa teoria da literatura, conto de fadas e literatura brasileira contemporânea

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