

Não. Essa não é a história de João e Maria. É sim, a do Pequeno Polegar. Mais de um século afasta as obras de Charles Perrault e dos irmãos Grimm. A familiaridade recorrente do tema, que aparece ainda em outras narrativas, é o fruto da tradição oral dos contos folclóricos, nos quais histórias curtas e de estrutura bem definida eram a princípio contadas de geração em geração e, só muito tempo depois, passaram a ser escritas. E como o provérbio já diz – quem conta um conto, aumenta um ponto –, o escritor e quadrinista inglês Neil Gaiman, criador de importantes obras como Sandman e Coraline, é agora mais um a revisitar essa história.
A influência surgiu para o escritor a partir de uma série de ilustrações feitas pelo artista gráfico e também quadrinista italiano Lorenzo Mattotti e que foram lançadas em comemoração à encenação da peça teatral de João e Maria no Metropolitan Opera, de Nova York. Contrastando com sua rica e iluminada palheta de cores, Mattotti optou pelo seco contraste do nanquim. Preto e branco criando sombrias ilustrações gestuais, quase abstratas. Perfeito retrato de uma opressiva floresta cercada de perigos.
Com base nesse clima soturno, Neil Gaiman não reinventa o conto. Ele o reescreve. Se a estrutura básica dos contos de fadas prima pelo texto extremamente curto, imposto pela necessidade da tradição oral – afinal, ele deveria ser contado para outra pessoa e assim por diante. Agora, o autor não mais está preso a essas amarras. A estrutura narrativa permanece intacta, mas Gaiman revisita e articula a história e seus personagens.
O contraste é claro. Se a penúria vivida pela família abre o capítulo inicial do conto clássico de maneira direta e já, de cara, nos propõe em poucas linhas o plano de deixar as crianças na floresta, Gaiman nos traz uma bela narração introdutória, com o desenvolvimento da história dos personagens e a gradual degradação da condição de vida da família devido à guerra (elemento que não existia originalmente) e o que se seguiu depois dela. E essa é outra característica importante.
A inclusão de pequenos elementos e detalhes dá um tom mais realista e amplifica a estranheza dentro da história, retirando o viés de ser apenas uma fábula moral sobre provação e superação e, assim, tornando palpável o desconforto. A sutil inclusão de correntes que prendem Maria ao pé da mesa na casa da velha senhora, por exemplo, é um desses pontos.
Gaiman retrabalha com maestria a obra, incorporando vários diálogos e enriquecedoras figuras de linguagem, ora de forma poética, ora de maneira aterradora. Como é usado para ressaltar a visão infantil sobre o medo da escuridão que se aproxima do bosque. A noite simplesmente não cai na floresta. É o dia que míngua, e “as sombras se esgueirando, saindo de debaixo de cada árvore”, cobrem tudo com suas trevas. Ou então, quando as crianças conseguem voltar para casa pela primeira vez. O lenhador, emocionado com a volta dos filhos e entre lágrimas, dá a eles cerejas de um pote. A mãe, impassível, observa, com fome, as últimas quatro cerejas do vidro. João e Maria, além de tudo, é uma história de horror.
*Valf é ilustrador