Neil Gaiman reinventa o clássico 'João & Maria', conferindo aspectos trágicos à história dos irmãos Grimm

Clima soturno do conto é ampliado pelos desenhos de Lorenzo Mattotti

por Valf 01/01/2016 08:00

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(foto: Reprodução)
Vivendo em uma terra distante, em um tempo distante, uma família assolada pela miséria e pela fome toma uma decisão drástica. Ou sua prole é levada para a floresta e lá deixada à mercê do destino, dando assim uma possibilidade maior de sobrevivência aos pais com as minguadas provisões da casa, ou o futuro de todo o clã fatalmente estaria traçado. O plano do casal é escutado pelo filho mais novo durante a noite e, usando de grande astúcia, projeta uma saída. Recolhe pequenas pedras no leito do rio para que possa marcar o caminho e voltar para casa em segurança. E assim o faz. Porém, em uma segunda tentativa, já sem as pedras salvadoras, é obrigado a usar em seu lugar pedaços de pão. Os pássaros comem as migalhas, fazendo assim com que os irmãos, agora perdidos no coração da floresta, sejam capturados para se tornar o prato principal de um banquete.


Não. Essa não é a história de João e Maria. É sim, a do Pequeno Polegar. Mais de um século afasta as obras de Charles Perrault e dos irmãos Grimm. A familiaridade recorrente do tema, que aparece ainda em outras narrativas, é o fruto da tradição oral dos contos folclóricos, nos quais histórias curtas e de estrutura bem definida eram a princípio contadas de geração em geração e, só muito tempo depois, passaram a ser escritas. E como o provérbio já diz – quem conta um conto, aumenta um ponto –, o escritor e quadrinista inglês Neil Gaiman, criador de importantes obras como Sandman e Coraline, é agora mais um a revisitar essa história.


A influência surgiu para o escritor a partir de uma série de ilustrações feitas pelo artista gráfico e também quadrinista italiano Lorenzo Mattotti e que foram lançadas em comemoração à encenação da peça teatral de João e Maria no Metropolitan Opera, de Nova York. Contrastando com sua rica e iluminada palheta de cores, Mattotti optou pelo seco contraste do nanquim. Preto e branco criando sombrias ilustrações gestuais, quase abstratas. Perfeito retrato de uma opressiva floresta cercada de perigos.


Com base nesse clima soturno, Neil Gaiman não reinventa o conto. Ele o reescreve. Se a estrutura básica dos contos de fadas prima pelo texto extremamente curto, imposto pela necessidade da tradição oral – afinal, ele deveria ser contado para outra pessoa e assim por diante. Agora, o autor não mais está preso a essas amarras. A estrutura narrativa permanece intacta, mas Gaiman revisita e articula a história e seus personagens.


O contraste é claro. Se a penúria vivida pela família abre o capítulo inicial do conto clássico de maneira direta e já, de cara, nos propõe em poucas linhas o plano de deixar as crianças na floresta, Gaiman nos traz uma bela narração introdutória, com o desenvolvimento da história dos personagens e a gradual degradação da condição de vida da família devido à guerra (elemento que não existia originalmente) e o que se seguiu depois dela. E essa é outra característica importante.


A inclusão de pequenos elementos e detalhes dá um tom mais realista e amplifica a estranheza dentro da história, retirando o viés de ser apenas uma fábula moral sobre provação e superação e, assim, tornando palpável o desconforto. A sutil inclusão de correntes que prendem Maria ao pé da mesa na casa da velha senhora, por exemplo, é um desses pontos.

 

Gaiman retrabalha com maestria a obra, incorporando vários diálogos e enriquecedoras figuras de linguagem, ora de forma poética, ora de maneira aterradora. Como é usado para ressaltar a visão infantil sobre o medo da escuridão que se aproxima do bosque. A noite simplesmente não cai na floresta. É o dia que míngua, e “as sombras se esgueirando, saindo de debaixo de cada árvore”, cobrem tudo com suas trevas. Ou então, quando as crianças conseguem voltar para casa pela primeira vez. O lenhador, emocionado com a volta dos filhos e entre lágrimas, dá a eles cerejas de um pote. A mãe, impassível, observa, com fome, as últimas quatro cerejas do vidro. João e Maria, além de tudo, é uma história de horror.


*Valf é ilustrador

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