Edição com dois livros de Maura Lopes Cançado ressalta a potência literária da autora

Diário de internação psiquiátrica da escritora 'Hospício é Deus' e coletânea de contos 'O sofredor do ver' levaram a mineira a ser considerada uma revelação da literatura brasileira, à época do lançamento

por Walter Sebastião 04/12/2015 12:30
EDITORA AUTÊNTICA/REPRODUÇÃO
(foto: EDITORA AUTÊNTICA/REPRODUÇÃO)
Uma autora e dois livros que, meio século depois de tornados públicos, continuam incandescentes. Assim são a escritora Maura Lopes Cançado (1929-1993) e os volumes Hospício é Deus (1965) e O sofredor do ver (1968). O primeiro é um diário de sua internação no Hospital Gustavo Riedel, Zona Norte do Rio de Janeiro, entre final de 1959 e começo de 1960. O segundo, uma reunião de contos que levaram a autora mineira a ser considerada uma revelação da literatura brasileira, à época do lançamento.

Nascida em São Gonçalo do Abaeté, Maura teve longa passagem por Belo Horizonte e se transferiu depois para o Rio de Janeiro, onde morou até sua morte. Filha de família rica, tradicional e poderosa, ela desafia as convenções sociais desde a adolescência e transforma sua aventureira existência em matéria literária.

Mesclando ironia sarcástica e drama, realismo e observação um grau acima do real, o íntimo e o social, Maura Lopes Cançado escreve sobre o que viu, o que viveu e o que encontrou à sua volta. Temas como loucura, memória, família e solidão são recorrentes em seus escritos, ao lado de reflexões sobre o mundo e a literatura.

Hospício é Deus narra a experiência e a história pessoal de uma mulher que se interna, voluntariamente, mais de 12 vezes, sendo uma delas num manicômio judiciário. O sofredor do ver, por sua vez, traz contos que, com linguagem elegante, clara e incisiva, reinventam e interpelam, impiedosamente, o cotidiano. Com páginas antológicas, o vigor dos dois volumes continua intacto.

SOMBRAS


Maura expõe, sem pudor, tudo que costuma ficar à sombra: a obsessiva necessidade de autoafirmação; a arrogância manifesta no apreço pela humilhação do outro; a prática de chantagem sentimental; a sedução por chocar, valendo-se, inclusive, da maledicência; carência sexual. Ela adora ser (de fato, representar) aquela criatura que todos odeiam.

Nos livros, justifica suas posições, às vezes dizendo-se vítima, mas sempre se afirmando superior, por ser rica, inteligente, bonita, talentosa – atributos que, antes de serem adubo para autoestima, tornam-se, no limite, rosário para autoflagelações. Narradora brilhante, Maura enreda o leitor e até o acua com uma visão infernal do mundo. É a própria escritora que se autodefine anjo com vocação para demônio.

A recente edição dos livros de Maura Lopes Cançado pela Autêntica sinaliza crescente interesse editorial pelo lado B da literatura brasileira. “Gostaria de recuperar obras e autores injustamente esquecidos, como é o caso de Maura”, afirma Maria Amélia Mello, que responde pelo setor de literatura da editora. Entre os lançamentos do selo programados para 2016, estão volumes de crônicas de Rubem Braga e Antonio Calado e Exílio no Rio, de Moacir Werneck de Castro, sobre passagem de Mário de Andrade pela capital carioca, incluindo anexo com a correspondência entre os escritores.

Maria Amélia trabalhou como jornalista em suplementos literários e conheceu Maura Lopes Cançado em 1970. “Foi um pouco angustiante. Queria fazer uma entrevista com ela, mas ela não quis falar”, recorda. Reeditar a obra da mineira sempre esteve na mira da editora. “É um texto forte, que sempre me impressionou. Intrigava-me como podia ficar tantos anos esquecido.” Maria Amélia observa que a escritora “adota uma prática muito contemporânea: a autoficção”, já que “ter vivido situações-limite e ser rodeada de escândalos não permitiu que ela fosse olhada como uma escritora sensível, especial, que criou textos de alta voltagem”.

Trecho

“O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura. Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável, decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava, subterrânea, desintegração, fim. Que mais? Morrer é imundo e humilhante. O morto é náuseo e, se observado, acusa alto a falta do que o distinguia. A morte anarquiza com toda dignidade do homem. Morrer é ser exposto aos cães covardemente.”

 Hospício é Deus


“Jamais fui atingida em minha essência”

Nona de 11 filhos, Maura Lopes Cançado nasceu numa família tradicional, de políticos e donos de terra. “Acredito ter sido criança excepcional, monstruosamente inteligente e sensível, perplexa e sozinha”, escreve. Após o nascimento de Maura, a família se muda para Patos de Minas, onde ela estuda em regime de internato.

Ainda adolescente, casa-se com Jair Praxedes, filho de um coronel, de quem se separa após o nascimento do único filho. Por vontade própria, em 1949, interna-se na Casa de Saúde Santa Maria, em Belo Horizonte, onde foi diagnóstica com epilepsia. Essa foi a primeira de uma longa série de internações.

“Terminarei minha vida como essas malas, cujos viajantes visitam vários países e em cada hotel por onde passam lhes pregam uma etiqueta: Paris, Roma, Berlim, Oklahoma. E eu: Personalidade psicopática, Paranoia, Esquizofrenia, Epilepsia, Psico Maníaco-depressiva, etc. Minha personalidade mesmo será sufocada pelas etiquetas científicas”, escreve no diário.

Separada do marido, acaba expulsa das pensões em que tenta morar, mudando-se então para hotéis. De acordo com peritos que analisaram suas condições psíquicas, visando à sua internação no manicômio judiciário, ela passa a se dedicar a uma “vida desregrada, boêmia, bebendo, fazendo farras homéricas, frequentando boates, tendo um amante a cada dia ou cada semana, sempre insatisfeita com tudo e com todos, porque, na realidade, não gostava de ninguém”.

Em 1955, já morando no Rio de Janeiro, tranca-se no banheiro da casa de um amigo e tenta suicídio. Convive com os responsáveis pelo Suplemento Literário do Jornal do Brasil, onde publica seus primeiros textos. As dificuldades financeiras e a instabilidade psíquica vão lhe render a fama de temperamento difícil, excêntrico, personagem de escândalos, o que não a impede de ser apontada, após a publicação de O sofredor do ver, como uma revelação literária.

Em 1972, internada pelo filho numa clínica de saúde em Botafogo, ela estrangula uma jovem, sendo interditada pela justiça em 1974. Vai então para o Manicômio Judiciário. Em 1980, ganha sua liberdade e morre em 1993.

“Meu reino não é deste mundo, pareço dizer-me quando tudo se mostra demais difícil e insuportável. Então tudo termina a um gesto íntimo meu. Se me lerem algum dia, sentirão talvez pena. Desnecessário, afirmo: jamais fui atingida em minha essência. Sou muito mais que o que me cerca. Sou deveras mais do que tudo que me foi dado conhecer – e desprezar. Ando quase sempre à procura da minha dimensão humana”, escreve ela.

Hospício é Deus – Diário I
232  págs.

O sofredor do ver 
136 págs.

Maura Lopes Cançado
Editora Autêntica
R$ 74

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