Livro 'Hereges', de Leonardo Padura, conta a história do navio St. Louis

Escritor cubano resgata a história da embarcação com 937 judeus que a Cuba de Fulgêncio Batista devolveu aos nazistas

por Leonardo Cavalcanti 13/11/2015 12:30
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(foto: Divulgação)
Histórias quase sempre são perdidas por motivos pouco nobres – a vergonha é um deles. O episódio envolvendo o navio St. Louis e os 937 judeus embarcados em Hamburgo, na Alemanha, com destino ao porto de Havana foi um dos momentos mais dramáticos do nazismo fora da Europa. Governos corruptos são, pela própria adjetivação, frouxos, no melhor estilo dos fracalhões. Ao não receber os imigrantes que tentavam fugir dos horrores de Hitler e dos alemães, os líderes e funcionários cubanos, entre eles o famigerado Fulgêncio Batista, mostraram como a estupidez nunca teve nacionalidade. E expuseram de maneira definitiva a covardia de um país corrupto entre as décadas de 1930 e 1950.

O cubano Leonardo Padura, um dos mais lúcidos e completos escritores atuais, resgata, em Hereges, a história do St. Louis, que, ao não conseguir desembarcar a grande maioria dos judeus em Cuba – apenas 28 conseguem descer na ilha –, teve de voltar à Europa, depois de também ser recusado nos portos dos Estados Unidos e do Canadá. Todos sabiam – de judeus embarcados a funcionários corruptos cubanos – que o retorno seria para encontrar a morte nos campos de concentração.

Se acertou no tema de imediato, Padura, entretanto, correu sério risco ao trazer para um livro com a densidade de Hereges o velho personagem de Mario Conde, o policial de seus romances anteriores – Um passado perfeito e Paisagem de outono. Explico. Livros policiais sempre sofreram forte preconceito por parte da crítica e de leitores que se consideram mais sofisticados. A depender do local da leitura e das pessoas em volta, portar um texto policial é quase vexaminoso. Ninguém precisa justificar o gosto literário – ou pelo menos não deveria –, mas, em determinadas rodas, a literatura policial é vista como algo menor, um passatempo de gente pouco ou nada madura, mais interessada em contos banais.

Textos policiais seguem amarração repetida. Se for para simplificar, pode-se dizer que alguém sempre estará envolto num mistério a ser resolvido. A grande sacada do autor é enredar o público até o final da história, oferecendo, cuidadosamente, pistas para, no desenlace, surpreender o coitado do leitor. Quanto mais intrincado o texto, mais prenderá a audiência. Com os crimes vêm sexo, álcool e muita testosterona. É compreensível que se torça o nariz para tais enredos. Mas autores como Dennis Lehane, James Ellroy, Raymond Chandler e o brasileiro Rubem Fonseca estão aí para mostrar o quanto há de vida inteligente na literatura policial. O próprio Padura é um dos melhores exemplos atuais disso.

De forma geral, escritores e leitores de policiais precisam de certa segurança literária para se impor. No caso de Padura, quem o conheceu a partir de O homem que amava os cachorros pode estranhar o ensolarado e por vezes angustiado Mario Conde. Na nota do autor, Padura é mais do que claro: “A história, a realidade e o romance funcionam com motores diferentes”. A mistura entre pesquisa histórica extensa para contar parte da saga do St. Louis, com toda a dramaticidade do enredo, e um personagem à beira do alcoolismo, mais velho e com a vida amorosa aparentemente resolvida, pode parecer esdrúxula nas primeiras páginas de Hereges. Nada mais falso.

Se Padura acertou na escolha do tema, acertou também ao tirar Mario Conde da aposentadoria, que parecia certa depois da publicação de O homem que amava os cachorros. Evocar um ex-policial para ajudar a contar a história de um curto, mas marcante, período cubano foi como sair sob o sol para tratar de temas pesados. Por mais tensos que sejam, sempre teremos a luz de Cuba e um bom trago para tomar no fim do dia. E sempre poderemos levar embaixo do braço um policial do Padura.

HEREGES

• De Leonardo Padura
• Boitempo
• 506 páginas

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